Opinião

STJ, ato cooperativo e recuperação judicial: necessária distinção em relação às operações de mercado

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13 de junho de 2025, 16h19

Desde a publicação da Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020 (que inseriu o §13º no artigo 6º da Lei nº 11.101, de 2005), o ato cooperativo ou a gozar de previsão legal expressa no sentido de sua exclusão do alcance e efeitos da recuperação judicial manejada por devedores que, de algum modo, tenham dívidas oriundas de relações de ato cooperativo. Entretanto, a despeito da expressa orientação do dispositivo de lei supracitado, alguns magistrados(as) no Brasil vinham entendendo pela inaplicabilidade desse dispositivo em benefício das cooperativas de crédito, credoras das empresas, face aos empresários ou produtores rurais que viessem a ingressar com pedido de recuperação judicial.

Valter Campanato/Agência Brasil

A fundamentação mais comum era no sentido da desqualificação jurídica de determinadas operações como ato cooperativo, por alegarem que as operações individualmente consideradas estariam em descomo com a essencialidade do ato cooperativo, ou mesmo focadas em auferir lucro, seja pelas taxas de juros praticadas, ou pelos instrumentos jurídicos utilizados para materialização da operação.

Com o devido respeito a posições contrárias, a verdade é que a projeção do ato cooperativo não se desenvolve ou manifesta por meio de operação individualmente consideradas. Mas ao contrário, o ato cooperativo é a própria razão fundante e sentido de existência do cooperativismo. O artigo 79, da Lei nº 5.764/1971, é claro ao conceituá-lo como toda a atividade desenvolvida entre cooperado e cooperativa “para consecução dos objetivos sociaise, além disso, confere-lhe uma qualificação jurídica imediata de não poder ser considerado como “operações de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria”. Ou seja, pela redação do dispositivo em questão, fica muito claro que o ato cooperativo não precisa concretamente ser diferenciado ou cotejado com outras operações de mercado. Ao contrário, essa diferenciação é consequência de sua manifestação.

Distinção de operações de mercado

A lógica, portanto, é inversa: não é necessário demostrar a distinção de operações de mercado para caracterizá-lo. Ele assim o é desde sua gênese simplesmente por ser ato cooperativo, cuja materialização decorrente basicamente da aferição de uma duplicidade de requisitos: relação cooperativa pura (entre sociedade e associado, ou entre cooperativas) e para concretização dos objetivos sociais para qual foi constituída.

Além disso, a aferição da caracterização de operações de mercado para cada atividade individualmente exercidas pela cooperativa não faz sentido jurídico-econômico. Isso porque todas as sobras existentes retornam e são repartidas entre os próprios cooperados, de sorte que — no final do dia — o resultado positivo gerado pelas operações termina por retornar ao próprio cooperado e aos seus sócios no ato cooperativo.

Spacca

O retorno das sobras líquidas é um dos pilares do cooperativismo brasileiro, que são distribuídas de maneira proporcional ao nível de envolvimento e utilização de cada associado (inciso VII, do artigo 4º, da Lei nº 5.764/1971). A participação econômica dos cooperados não é uma jabuticaba brasileira, mas inclusive um dos princípios internacionais do cooperativismo mundial, divulgados pela ICA (International Cooperative Alliance).

Portanto, o ato cooperativo é tudo o que envolve e define a estruturação do modelo societário cooperativista como ele é. É impossível tentar compará-lo ou equipará-lo com operações exercidas por outras instituições de mercado concorrentes.

Ato cooperativo deve ser visto como um todo

Se determinada instituição financeira pratica operações de mercado a preço “menor”, isso tem correlação direta com o apetite ao lucro praticado por aquela instituição privada, que pode ser menor naquela situação em concreto. O contrário não se aplica ao modelo cooperativo, que visa tão somente a recompor os custos de manutenção operacional de suas atividades, que também poder ser eventualmente maior naquela situação em concreto. É por isso que analisar o ato cooperativo em “caixinhas isoladas” não é a melhor opção, pois o ato cooperativo deve ser analisado em sua completude e todas as peculiaridades.

Compreender ou encampar uma ideia de descaracterização in concreto do ato cooperativo seria o mesmo que tutelar o direito a indenização por uma autolesão, ou mesmo a responsabilização obrigacional de alguém que ao mesmo tempo é credor e devedor de si mesmo. Se no final tudo retorna ao associado (seja por meio das sobras ou pelo favorecimento em geral que a cooperativa devolve aos seus associados, que dela também são donos), há uma impropriedade lógica de se conseguir instrumentalizar qualquer prejuízo ao associado.

Em diversas agens da Constituição, o legislador constituinte se preocupou em estabelecer preceitos e manifestações dirigidas propriamente ao cooperativismo brasileiro. Quando descreveu o papel do Estado na economia, claramente apontou para a necessidade de se implementar legislações que viessem a fomentar o cooperativismo e outras formas de associativismo (vide artigo 174, §2º).

Ao simplesmente desconsiderarem que determinadas operações financeiras sejam caracterizadas como ato cooperativo, o Poder Judiciário estaria indiretamente a declarar a inconstitucionalidade do artigo 192, da Constituição, que versa sobre a organização do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e ite a atuação de cooperativas de crédito na consecução de serviços de natureza financeira [1], o que só é possível em decorrência do reconhecimento do ato cooperativo praticado entre associado e cooperativa.

Tributação em cooperativas de crédito

Ao discutir a questão da tributação em cooperativas de crédito, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já vinha construindo entendimento jurisprudencial claro no sentido de que o ato cooperativo de crédito deveria envolver: a captação de recursos; a realização de empréstimos aos cooperados; e a movimentação financeira praticada pela cooperativa, o que ensejaria a respectiva isenção de PIS e Cofins de suas receitas [2].

Seguindo essa mesma linha de compreensão, mas agora com um enfoque segregado das possíveis repercussões tributárias envolvidos, o STJ enfrentou concretamente a questão da maneira de qualificação do ato cooperativo no âmbito de operações de crédito estabelecidas entre associado e sociedade cooperativa. Em maio de 2025, ao julgar o Recurso Especial nº 2.091.441/SP, a 3ª Turma do STJ reconheceu, à unanimidade, que o ato cooperativo não detém a capacidade de ter sua natureza jurídica simplesmente afastada ou descaracterizada em situações concretas, ressaltando a sua automática manifestação nas relações firmadas entre associado e sociedade cooperativa.

No caso em específico, a alegação dos recorrentes era de que operação de crédito instrumentalizada via CCB (Cédula de Crédito Bancário) não poderia ser considerada ato cooperativo, por ser tratar de operação típica de mercado, em igualdade de juros e prazos. Além disso, argumentaram também que as cooperativas de crédito integravam o SFN e, portanto, deveriam se equiparar em tudo às demais instituições financeiras.

Na construção do raciocínio do voto (relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva), fica clara compreensão da Corte quanto à existência de duas correntes doutrinárias para enfretamento do ato cooperativo e interpretação do artigo 79, da Lei nº 5.764/1974, especialmente à luz da interpretação do verbo “implicar” utilizado pelo dispositivo legal.

A primeira linha doutrinária, defende que o ato cooperativo não se manifestaria de forma automática, sendo necessária a análise individual das operações para saber se a natureza de ato cooperativo se mantém, sob pena de caracterização de operação de mercado. Inclusive, é citado como principal argumento dessa corrente o entendimento jurisprudencial do STJ no sentido da aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) às cooperativas de crédito, por ostentarem natureza de instituição financeira (Súmula nº 297/STJ), sob a premissa de que haveria subordinação natural da relação consumerista, e não a presença de mutualismo.

Cooperativas e instituições financeiras

De outro lado, a segunda corrente doutrinária (a qual se filiou o STJ) destaca os diversos pontos distintivos que separam as cooperativas de crédito da equiparação pura e simples a outras instituições financeiras. Os defensores dessa corrente destacam: o modo de constituição distinto de bancos e cooperativas, nos termos do artigo 25, da Lei nº 4.595, de 1964); a captação de recursos e concessão de créditos e garantias baseadas na mutualidade, ao nicho específico de seus associados, conforme artigo 2º, §1º, da LC 130/2009; a regulação específica do SFN, que não modifica o regime jurídico cooperativo, mas pelo contrário, amolda-se perfeitamente à sua realidade; e que os juros cobrados nas operações não afasta o caráter cooperativo, utilizado para manutenção e continuidade dos serviços, em benefícios dos próprios cooperados.

Identificando bem esses dois posicionamentos, o STJ se filiou à segunda corrente doutrinária, reconhecendo o vetor diferencial presente nas cooperativas, como a participação dos associados na gestão da cooperativa, fator de especial diferenciação frente aos clientes de outras instituições financeiras. Além disso, reconheceu que as sobras decorrentes de ato cooperativa poderão ser revestidas em favor dos associados, ao contrário do que acontece quando a relação da cooperativa se dá com terceiro, sobre a qual incide tributação e os recursos são destinados ao Fates (Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social).

Nesse sentido, então, reconheceu o STJ que basta que “o ato de concessão de crédito está dentro dos objetivos sociais [de uma cooperativa de uma cooperativa de crédito], constituindo, portanto, ato cooperativo” e que “a vingar o entendimento da primeira corrente, uma cooperativa não realizaria atos cooperativos” [3]. Assim, à luz dessas deliberações, entendeu a Corte pela exclusão do crédito de cooperativas de crédito dos efeitos da recuperação judicial, na forma do artigo 6º, §13º, da Lei nº 11.101, de 2005.

Tal entendimento é fundamental e evidencia a natureza específica e nuclear do ato cooperativo, deixando afora dessa análise eventuais elementos externos que poderiam potencialmente influir em seu adequado tratamento jurídico, o que somente fortalece e reconhece a identidade e marca singular do cooperativismo como modelo econômico de desenvolvimento econômico, social e regional.

 


[1] Nesse ponto, é crucial salientar a importância da apropriação de conceito de cooperativismo “financeiro” para representar esse ramo, a demonstrar como a gama de atividades a serem desempenhadas por uma cooperativa de crédito não se restringe à oferta de crédito aos seus associados, mas também inclui a possibilidade oferta de outros serviços financeiros em geral, que podem ser explorados por qualquer instituição financeira.

[2] Nesse sentido, vide julgamento do AgInt no AgInt no RESP nº 1.173.577/MG, de relatoria do Min. Napoleão nunes Maia Fiho, julgado em 21.03.2017: “TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. COOPERATIVA DE CRÉDITO. PIS/COFINS. APLICAÇÕES FINANCEIRAS. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. […] 2. No caso das cooperativas de crédito, o ato cooperativo envolve a captação de recursos, a realização de empréstimos efetuados aos cooperados, bem assim a movimentação financeira da cooperativa, de sorte que toda a receita das cooperativas de crédito é isenta de PIS e COFINS, segundo o entendimento do STJ. A saber, cite-se precedente específico da 1a. Seção: REsp. 591.298/MG, Rel. Min. TEORI ALBINO ZAVASCKI, Rel. p/acórdão Min. CASTRO MEIRA, 1a. Seção, DJ 7.3.2005, p. 136. 3. Agravo Interno da FAZENDA NACIONAL desprovido”.

[3] Páginas 12 e 13, do acórdão exarado no RESP 2.091.441/SP, publicado em 28.05.2025. Disponível  aqui.

Autores

  • é advogado da OCB Nacional, mestre acadêmico em Direito pelo IDP/Brasília, especialista em direito cooperativo, criptoativos e meios de pagamento e autor de obras e artigos jurídicos.

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