Opinião

O legado de George Floyd e o álibi legislativo criminal

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13 de junho de 2025, 20h46

No dia 25 de maio de 2020, em Mineápolis (EUA), um afro-americano chamado George Floyd foi estrangulado por um policial branco, Derek Chauvin, após imobilizá-lo e ajoelhar sobre seu pescoço. A cena rodou o mundo e provocou o crescimento do movimento Black Lives Matter [1] em escala mundial, tendo por pano de fundo a discussão sobre a letalidade da polícia e o racismo estrutural.

Como noticiou recentemente o The New York Times:

“After Floyd’s murder, states and police departments banned chokeholds and no-knock warrants. They mandated body cameras. They rewrote guidelines about how to de-escalate a confrontation with a suspect. They educated officers about racial profiling. And more. The changes weren’t universal, and some places did more than others. But every state ed at least some changes.[2]

Além disso, em alguns estados americanos houve intervenção governamental para aumentar a transparência e divulgar casos de abuso de autoridade policial.

Todavia, após cinco anos da morte de George Floyd é hora de fazer um balanço sobre as mudanças perpetradas e quais os efeitos práticos alcançados ao longo deste período.

Aumento de morte por policiais

As mortes por policiais giravam em torno de 1.000 em 2019 e chegaram a 2024 com o número crescente de 1226; ou seja, mais de 20% de aumento em cinco anos, segundo o mapa de violência policial compilado pelo Washington Post e divulgado pelo Jornal New York Times[3].

E pelos números apresentados, os policiais mataram três vezes mais pessoas negras que pessoas brancas neste período. Ou seja, embora o movimento tenha criado um ambiente de ampla discussão do tema, na realidade fática não obteve resultados práticos.

Vejamos o gráfico que traz os dados de mortes praticadas por policiais entre 2015 a 2024 nos EUA.

Mudanças no Brasil

No Brasil também tivemos efeitos do movimento Black Lives Matter  impulsionando o debate sobre racismo, violência policial, desigualdade social, invasão de favelas e outras ações contra a população negra.

Embora não se trata especificamente para proteção das pessoas negras, o debate sobre o uso obrigatório de câmeras por policiais virou pauta no Brasil, chegando ao Supremo Tribunal Federal.

Após os trâmites processuais, foi homologado um acordo judicial que amplia o uso das câmeras corporais em São Paulo, no âmbito da Suspensão de Liminar 1696 apresentada pela Defensoria Pública do Estado.

Spacca

Nos termos do acordo: “Conforme o acordo, haverá um termo aditivo no contrato firmado entre o Estado de São Paulo e a empresa Motorola para aumentar o número de câmeras corporais (COPs) em 25%, alcançando o total de 15 mil equipamentos. Também serão alocados 80% do total de câmeras para cobrir totalmente as unidades de alta e média prioridade.(…) O uso obrigatório de câmeras vale para regiões com equipamentos disponíveis e se aplica em operações de grande porte ou que incluam incursões em comunidades vulneráveis, quando se destinarem à restauração da ordem pública. Ficou também determinado o uso obrigatório das câmeras em operações deflagradas para responder a ataques contra policiais militares. Caso seja necessário o deslocamento de tropas, policiais que usem COPS deverão ser priorizados e, se isso não for possível, é preciso apresentar razões técnicas, operacionais e/ou istrativas que justifiquem a medida”[4].

Iniciativas no esquecimento

A par de iniciativas como essas, infelizmente, tanto no Brasil como nos EUA, diversas propostas feitas no clamor da morte de Floyd foram esquecidas ou não aprovadas como nos estados americanos de Ohio, Minnesota e Missouri que rejeitaram mais de 95% das propostas apresentadas aos corpos legislativos.

Como sói acontecer, o direito penal simbólico é utilizado como retórica para acalmar a população e gerar uma sensação de segurança e tranquilidade, o que se perfaz em legislações álibi ou apenas em discursos calorosos para angariar votos de eleitores desinformados.

A verdade é que a população negra, mesmo após a morte e a repercussão mundial do caso George Floyd continua a sofrer os efeitos de um sistema estruturalmente racista, desigual e seletivo.

Seletividade na violência

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024 demonstra essa seletividade. De 2013 a 2023 a letalidade policial cresceu 188,9%, sendo que em 2023 foram 6.393 mortes. Destas 82,7% eram pessoas negras, 71,7% com idade entre 12 e 29 anos e 99,3% do sexo masculino, ou seja, o alvo principal é o jovem negro do sexo masculino.

Também os policiais negros são mais vítimas de crimes, ou seja, conforme o mesmo Anuário, 65,7% eram pessoas negras, 51,5% com idade entre 35 e 45  anos e 96% do sexo masculino.

As vítimas de feminicídio possuem o mesmo perfil predominante, ou seja, 88,2% são do sexo feminino, sendo 76% vulneráveis e 52,2% negras.

Os números dizem que: “Além dos marcadores de gênero e idade, a raça/cor se mostrou um fator determinante nas diferenças de mortalidade por intervenções policiais no ano ado. Enquanto a taxa de mortalidade de pessoas brancas foi de 0,9 mortos para cada grupo de 100 mil pessoas brancas, a taxa de negros foi de 3,5 para cada grupo de 100 mil pessoas negras. Isto significa dizer que a taxa de mortalidade de pessoas negras em intervenções policiais é 289% superior à taxa verificada entre pessoas brancas, na evidência do viés racial nas abordagens e no uso da força das polícias brasileiras. Em relação à proporção, 82,7% das vítimas eram negras, 17% brancas, 0,2% indígenas e 0,1% amarelos” [5].

As pessoas negras também são mais vítimas de crimes violentos como roubos e estupros, principalmente, as mais jovens.

Em 2005, a população prisional negra era de 91.843, o que representava 58,4% do todo. Em 2023 pulou para 472.850, o que representa um percentual de 69,1%. No sistema socioeducativo a situação não é diferente.

Racismo estrutural

Portanto, o sistema prisional tem perpetuado o racismo estrutural, já que a rotulação que essas pessoas sofrem ao ar pelo sistema carcerário gera maior exclusão social quando do retorno à sociedade.

Momento em que Derek Chauvin matava George Floyd

Logo, o processo de criminalização é racista, seletivo e desigual, já que ainda que a criminalização primária não influencie diretamente nestes casos (mas influencia de maneira indireta, na superproteção para bens jurídicos patrimoniais e na extinção de punibilidade por pagamento em crimes do colarinho branco), fica claro o racismo estrutural na criminalização secundária por vieses estereotipados, práticas reiteradas, questões culturais e o inconsciente coletivo de que o não direito e o autoritarismo podem ser justificados em comunidades pobres de maioria negra (invasões de domicílio sem mandato judicial, prisões e buscas e apreensões em suspeitas não evidentes, dentre outros); isto é, o não direito pela classe e raça justificado por um discurso de lei e ordem.

Ora, diante do cenário apresentado e pelos dados acima expostos, a legislação criminal continua sendo álibi na proteção dos direitos das pessoas negras, o sistema penal continua seletivo, o legado de George Floyd não gerou efeitos práticos aqui e alhures, não mudamos nossa cultura estimulada por estereótipos de rotulação e o sistema carcerário continua sendo a reprodução deste conjunto de elementos.

Ainda que não sejamos quem éramos, pós-George Floyd, precisamos de mudança urgente neste cenário.

Como diria Martin Luther King:

“Nós não somos o que gostaríamos de ser.
Nós não somos o que ainda iremos ser.
Mas, graças a Deus,
Não somos mais quem nós éramos.”

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Referências Bibliográficas

Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Ed. Freitas Bastos, 1999.

BECKER, Howard. Studies in the Sociology of Deviance. Free Press, Londres, 2018.

FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão (Teoria do Garantismo Penal), 4 ed. – São Paulo, RT, 2014.

GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio. Criminologia: uma introdução a seus fundamentos teóricos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992.

MOURA, Grégore. Sistema Penal e Racismo: por uma Criminologia da Pessoa Negra. Disponível  aqui.

Portal STF.

The Morning, 23 maio de 2025. Newsletter. New York Times Journal.

 


[1] A missão do movimento é: “Black Lives Matter is working inside and outside of the system to heal the past, reimagine the present, and invest in the future of Black lives through policy change, investment in our communities, and a commitment to arts and culture”. Em tradução livre: “O Black Lives Matter está trabalhando dentro e fora do sistema para curar o ado, reimaginar o presente e investir no futuro das vidas negras por meio de mudanças políticas, investimentos em nossas comunidades e um compromisso com as artes e a cultura”. Disponível aqui.

[2] Em tradução livre: Após o assassinato de Floyd, estados e departamentos de polícia proibiram estrangulamentos e mandados de prisão sem aviso prévio. Tornaram obrigatório o uso de câmeras corporais. Reescreveram diretrizes sobre como apaziguar um confronto com um suspeito. Educaram os policiais sobre discriminação racial. E muito mais. As mudanças não foram universais, e alguns lugares fizeram mais do que outros. Mas todos os estados aprovaram pelo menos algumas mudanças. Disponível em The Morning, 23 maio de 2025. Newsletter. New York Times.

[3] Disponível em The Morning, 23 maio de 2025. Newsletter. New York Times.

[4] Disponível aqui.

[5] Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024. Disponível aqui.

Autores

  • é desembargador do TRF-6 (Tribunal Regional Federal da 6° Região), mestre e doutor em Direito, professor de Direito Penal Informático e Criminologia, palestrante e autor do livro "Curso de Direito Penal Informático", pela Editora D’Plácido.

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