Opinião

Institucionalização do perfilamento criminal pela Polícia Civil de São Paulo

Autor

  • é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

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13 de junho de 2025, 11h18

Os crimes de autoria desconhecida, como homicídios múltiplos, delitos sexuais e crimes em série, impõem desafios significativos à atuação das polícias judiciárias no Brasil. Pela ausência de motivação evidente ou de vínculo claro entre autor e vítima, tais casos exigem métodos investigativos que superem a abordagem empírica tradicional. Nesse contexto, técnicas indutivas baseadas na análise comportamental, na criminologia aplicada e em saberes interdisciplinares tornam-se fundamentais para qualificar a investigação criminal. O estudo do comportamento criminoso contribui para a identificação de modus operandi, padrões de conduta e perfis psicológicos, permitindo maior capacidade de antecipação e resposta por parte das autoridades policiais.

Tânia Rêgo/Agência Brasil
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Nesse cenário, o perfilamento criminal (ou criminal profiling) começa a ocupar espaço na agenda institucional das polícias brasileiras. De prática antes intuitiva, ou a ser compreendido como técnica fundamentada em dados empíricos e referenciais teóricos robustos, especialmente após sua inclusão em cursos especializados. A matriz curricular da academia de polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra” já contempla essa abordagem, promovendo a formação de profissionais aptos a aplicar o perfilamento em investigações complexas. A criação do Núcleo de Análise Comportamental e Criminal (Nacc), por meio da Portaria DGP nº 15/2025, no âmbito do DHPP, representa um marco inédito de institucionalização dessa metodologia no Brasil.

Panorama conceitual e histórico do perfilamento criminal

O perfilamento criminal possui raízes históricas que remontam às tentativas precoces de compreender o comportamento delitivo com base em traços psicológicos e físicos, como evidenciado na obra de Cesare Lombroso (2001 [1876]), no século 19. Embora as teorias lombrosianas tenham sido amplamente criticadas e superadas, sobretudo por sua carga determinista e biologizante, seu legado está presente na ideia de que certos padrões de conduta poderiam ser sistematicamente observados e descritos. No século 20, essa premissa foi retomada sob nova roupagem, com ênfase empírica e aplicada, especialmente nos Estados Unidos, quando a Behavioral Science Unit do FBI, criada em 1972, desempenhou papel pioneiro na sistematização do perfilamento com base em entrevistas com criminosos condenados e análise de cenas de crime. Essa experiência foi fundamental para o desenvolvimento do chamado criminal investigative analysis, modelo que viria a inspirar diversas polícias no mundo ocidental (Ressler; Burgess; Douglas, 1995; Siena, 2024).

Do ponto de vista metodológico, a literatura especializada distingue três principais abordagens de perfilamento: a clínica, a estatística e a investigativa. A abordagem clínica é baseada na experiência subjetiva de psicólogos e psiquiatras forenses, que, por meio da observação e do histórico dos sujeitos, elaboram inferências sobre traços e padrões comportamentais. A abordagem estatística fundamenta-se em grandes bancos de dados e análise multivariada, buscando correlações entre características do crime e perfis conhecidos de autores.

Já a investigativa, defendida por autores como David Canter, propõe uma síntese das duas anteriores, utilizando dados empíricos, análise espacial e técnicas psicológicas para gerar hipóteses investigativas (Canter, 2000). Essas metodologias são aplicadas principalmente em casos de crimes em série, assassinatos com modus operandi peculiar, delitos sexuais de autoria oculta e estratégias de geoprofiling, nas quais se estima a área de residência ou atuação do autor com base na distribuição espacial das ocorrências (Turvey, 2012; Siena, 2025).

Apesar de seus avanços, o perfilamento criminal não está imune a críticas epistemológicas. Uma das principais objeções diz respeito ao risco de subjetivismo excessivo, especialmente nas abordagens clínicas, que podem refletir os vieses e intuições pessoais do profissional, afastando-se da verificabilidade empírica. Outro ponto sensível refere-se à possibilidade de estigmatização de indivíduos ou grupos sociais com base em traços genéricos, psicológicos ou comportamentais, o que pode acarretar práticas discriminatórias e violações a direitos fundamentais.

Além disso, autores críticos apontam para a seletividade implícita em alguns usos do perfilamento, sobretudo quando empregados em contextos de policiamento preditivo, onde o recorte socioeconômico ou territorial dos suspeitos é influenciado por padrões históricos de repressão (Becker, 1963; Siena, 2024). Por essas razões, a institucionalização do perfilamento exige critérios rigorosos de fundamentação, transparência metodológica e controle externo para garantir sua legitimidade no campo investigativo e processual penal.

Perfilamento criminal no ordenamento jurídico brasileiro

No ordenamento jurídico brasileiro, o uso do perfilamento criminal precisa ser compatibilizado com o sistema de garantias constitucionais previsto nos artigos 5º e 144 da Constituição. O primeiro assegura, entre outros direitos, o devido processo legal, a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa, enquanto o segundo estabelece a segurança pública como dever do Estado e disciplina a atuação das polícias judiciárias. À luz desses dispositivos, qualquer técnica investigativa, inclusive o perfilamento, deve respeitar os limites estabelecidos pela Constituição, evitando práticas que comprometam a legalidade do processo.

No plano infraconstitucional, o artigo 155 do Código de Processo Penal impõe que a decisão judicial se funde em provas produzidas em contraditório, vedando a utilização exclusiva de elementos informativos da fase inquisitorial. Isso significa que inferências comportamentais elaboradas por perfis psicológicos, quando utilizadas, precisam ser devidamente corroboradas por provas judicializadas e submetidas ao crivo do contraditório.

Spacca

Essa leitura é reforçada pela doutrina processual penal contemporânea, que trata com rigor a issibilidade e o valor probatório de elementos informativos oriundos da investigação. Para Gustavo Badaró (2015), a liberdade probatória não é sinônimo de ausência de limites, pois encontra seu fundamento na licitude da prova, na legalidade do meio utilizado e na observância do contraditório.

A produção de inferências psicológicas ou comportamentais que não sejam íveis de escrutínio pelas partes pode comprometer o equilíbrio do processo penal. Da mesma forma, Aury Lopes Jr. (2023) defende que o modelo acusatório exige que toda prova válida derive de atividade processual, com participação dialética das partes e possibilidade de contestação. Assim, o perfilamento criminal não pode assumir o papel de prova autônoma ou servir de base única para atos decisórios — como decretação de prisão, denúncia ou sentença — sob pena de violação à lógica adversarial do processo penal.

O perfilamento criminal pode ser juridicamente enquadrado em quatro categorias distintas, a depender de como for empregado na persecução penal:

  • como meio de obtenção de prova, orientando a coleta de dados empíricos a partir de hipóteses investigativas;
  • como prova inominada, issível sob a cláusula geral da liberdade probatória, desde que lícita e respeitado o contraditório;
  • como indício, compondo a cadeia lógica de evidências que apontam para determinada autoria; e
  • como fonte de prova, funcionando como instrumento preparatório para a produção de provas diretas (Siena, 2025).

Contudo, para que qualquer dessas hipóteses seja juridicamente válida, é imprescindível que se estabeleçam protocolos técnicos e garantias mínimas de transparência metodológica, controle institucional e respeito à dignidade da pessoa humana. A ausência desses parâmetros pode converter o perfilamento em instrumento de arbitrariedade, deslocando a investigação do campo da ciência para o da especulação subjetiva.

Análise da Portaria DGP nº 15/2025

Com a publicação da Portaria DGP nº 15, de 26 de maio de 2025, a Polícia Civil do Estado de São Paulo deu um o inédito na institucionalização do perfilamento criminal como ferramenta técnica de apoio à investigação. O ato normativo criou, no âmbito do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), o Núcleo de Análise Comportamental e Criminal (Nacc), unidade especializada responsável por elaborar perfis de suspeitos, vítimas e testemunhas com base em metodologias reconhecidas na literatura especializada, como o perfilamento clínico, estatístico e investigativo. As competências do núcleo incluem desde a produção de pareceres comportamentais até a realização de diligências de campo em conjunto com as equipes do DHPP, sempre observando os princípios da legalidade, do sigilo e da dignidade da pessoa humana.

O Nacc está estruturado para atuar de forma integrada ao ciclo investigativo, produzindo análises técnicas que subsidiem as autoridades policiais na interpretação de padrões criminosos e na formulação de estratégias mais eficazes de repressão e prevenção.

Trata-se de uma iniciativa normativa pioneira no contexto brasileiro, não havendo, até o momento, portarias ou regulamentos similares com esse grau de formalização e delimitação de competências em outras polícias civis ou mesmo na Polícia Federal. Embora haja experiências pontuais de aplicação do perfilamento criminal em casos concretos, como nos homicídios em série ou crimes sexuais, não se observa a criação de unidades permanentes com atribuições definidas e amparo legal explícito para o desenvolvimento dessa atividade.

A Portaria DGP nº 15/2025, ao prever expressamente o uso de técnicas de criminal profiling com base técnico-científica, contribui para a consolidação de uma cultura de investigação orientada por evidências e pela racionalidade analítica, aproximando a atuação da polícia judiciária brasileira de modelos consolidados em democracias ocidentais, como Estados Unidos, Reino Unido e Canadá (Turvey, 2012; Canter, 2000).

As potencialidades da nova unidade são múltiplas. Do ponto de vista operacional, o Nacc pode se tornar uma ferramenta decisiva para a elucidação de crimes de autoria desconhecida, sobretudo nos casos que envolvem múltiplas vítimas, modus operandi padronizado ou indícios de motivação sexual ou psicopatológica. Sua atuação tem o potencial de qualificar a análise criminal no plano estratégico, mediante a elaboração de relatórios de inteligência sobre incidência, tipologia e motivação dos delitos. Além disso, a portaria prevê expressamente a possibilidade de cooperação técnica com outras polícias civis do país, o que amplia a capacidade de articulação interestadual e o compartilhamento de metodologias padronizadas.

No médio prazo, a consolidação do Nacc poderá favorecer a criação de bancos de dados comportamentais e fomentar o desenvolvimento de um protocolo nacional de perfilamento criminal, com impacto positivo tanto na eficácia investigativa quanto na produção de conhecimento qualificado sobre criminalidade violenta no Brasil.

Desafios e perspectivas da institucionalização do perfilamento

A criação do Nacc representa um avanço expressivo na modernização das práticas investigativas da Polícia Civil de São Paulo. Como todo processo de inovação institucional, essa medida demanda atenção a alguns desafios importantes, sobretudo no que diz respeito à qualificação técnica dos profissionais e à definição de protocolos metodológicos. A atividade de perfilamento criminal, por sua natureza interdisciplinar, exige formação especializada em áreas como psicologia investigativa, criminologia empírica, vitimologia e análise espacial. Esse cenário, contudo, não deve ser visto como obstáculo, mas como oportunidade para investir em capacitação permanente, intercâmbios com centros de excelência e desenvolvimento de manuais operacionais que assegurem a padronização e a transparência do método (Canter, 2000; Turvey, 2012).

Entre os principais desafios está a consolidação de critérios normativos e operacionais que assegurem a adequada inserção do perfilamento no ciclo investigativo, sem que se perca de vista sua natureza auxiliar. A incorporação dessa técnica não demanda uma ruptura com os princípios processuais vigentes, mas sim sua compatibilização com o modelo acusatório e com o devido processo legal.

A análise comportamental, quando adequadamente fundamentada e documentada, pode agregar valor significativo à investigação preliminar e à formação de linhas de apuração mais eficazes. O esforço da Polícia Civil de São Paulo nesse sentido abre caminho para o amadurecimento institucional da técnica no Brasil, incentivando outras polícias a construírem protocolos próprios, com atenção ao contraditório, à publicidade e à formação de pessoal. Nesse contexto, o perfilamento criminal deixa de ser um instrumento intuitivo ou ocasional e a a integrar uma estratégia de atuação racional, tecnicamente sustentada e socialmente legítima.

Por derradeiro, é fundamental consolidar uma cultura de transparência institucional e responsabilidade técnico-científica na produção de perfis comportamentais. A formalização do Nacc oferece um ambiente propício para o desenvolvimento de práticas estruturadas, auditáveis e metodologicamente robustas, que podem se converter em referência nacional. Ao instituir mecanismos de governança, como relatórios periódicos, formação continuada e integração com sistemas de inteligência, o DHPP contribui para a construção de uma polícia cada vez mais analítica, moderna e orientada por evidências. Longe de representar risco ou ameaça, a institucionalização do perfilamento é, portanto, uma oportunidade de fortalecer o compromisso das polícias judiciárias com a legalidade, a técnica e a justiça, desde que acompanhada de investimento, capacitação e controle público qualificado.

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Referências

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Curso de processo penal: provas. 6. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2015.

BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 1963.

CANTER, David V. Criminal Shadows: Inside the Mind of the Serial Killer. London: HarperCollins, 2000.

LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. 6. ed. São Paulo: Edusp, 2001[1876].

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 19. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2023.

RESSLER, Robert K.; BURGESS, Ann W.; DOUGLAS, John E. Sexual Homicide: Patterns and Motives. New York: Free Press, 1995.

SIENA, David Pimentel Barbosa de. Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024.

SIENA, David Pimentel Barbosa de. Qual é a natureza jurídica do perfilamento criminal? Consultor Jurídico, São Paulo, 6 fev. 2025. Disponível aqui.

TURVEY, Brent E. Criminal Profiling: An Introduction to Behavioral Evidence Analysis. 4. ed. San Diego: Academic Press, 2012.

Autores

  • é graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, mestrado e doutorado em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC, delegado de polícia do estado de São Paulo, professor de Criminologia da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra, professor de Direito Penal, coordenador pedagógico do Curso Superior de Tecnologia em Segurança Pública e coordenador do Observatório de Segurança Pública da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, tutor da Rede de Ensino à Distância da Secretaria Nacional de Segurança Pública, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça da UFABC e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

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