Opinião

Cortes expandem diálogos institucionais para o plano internacional

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  • é pós-doutorando em Direito na Universidade Federal da Bahia (UFBA) doutor em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-DF) e juiz federal da 20ª Vara de Salvador (BA).

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13 de junho de 2025, 7h02

Na teoria constitucional dos últimos anos, a palavra “diálogo” surge como uma metáfora que reflete a interação entre os Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo na tarefa de interpretar a Constituição, sem que haja uma predefinição da supremacia da atividade decisória de um sobre os outros. O pano de fundo dessa abordagem é a separação dos poderes e tem por objetivo mostrar como é possível pensar essa tarefa de forma dialógica e cooperativa, ao invés de encará-la como uma disputa entre adversários [1].

Antonio Augusto/STF
Fachada do Supremo Tribunal Federal, sede do STF

O governo, no Estado democrático de Direito, precisa operar de acordo com um rol de regras e princípios estabelecidos na Constituição, os quais têm como conteúdo a proteção de direitos fundamentais. Assim, a Constituição é o e muitas vezes utilizado para barrar escolhas democráticas majoritárias. Logo, a guarda da Constituição e um conjunto de decisões majoritárias que definem o autogoverno de um povo representam a tensão entre constitucionalismo e democracia.

Em substituição a uma leitura tradicional da separação dos poderes, as teorias dos diálogos institucionais procuram evidenciar que: [1] as decisões sobre o significado da Constituição, tomadas por qualquer um dos poderes, am a ter um caráter parcialmente definitivo, pois podem ser contestadas em instâncias dos outros poderes; e [2] cada poder possui características que o potencializam ou o inibem para a tomada de decisões em casos específicos. Isso reafirma a necessidade de canais de diálogo entre as instituições dos diversos poderes, pois fatores contingentes e circunstanciais determinam qual instituição tem mais legitimidade para interpretar a Constituição em um determinando caso específico [2].

Brandão enumera diferentes formas de interação institucional envolvendo a tarefa das Supremas Cortes de interpretar a Constituição: [1] ataques institucionais à Suprema Corte, como a alteração do número de seus membros, a manipulação de suas competências e o impeachment de juízes para fins não disciplinares (sobretudo para o realinhamento da sua jurisprudência às preferências políticas prevalecentes); [2] o poder do parlamento sobre o orçamento dos tribunais e sobre o salário dos juízes; [3] o processo de nomeação e de investidura dos juízes da Suprema Corte [4]; a não implementação de decisões judiciais; e [5] mecanismos de superação legislativa de decisões judiciais, como a edição de emendas constitucionais e de leis [3].

Ilustrando esse diálogo institucional com as Supremas Cortes na realidade empírica e seguindo, na medida do possível, as formas de interação acima mencionadas, citem-se os seguintes exemplos:

[1] o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, demitiu o diretor do serviço de segurança interna alegando incompetência, mas a verdadeira razão era por ter mandado investigar assessores do governo suspeitos de corrupção. A oposição levou o caso à Suprema Corte, que ordenou o congelamento da demissão. Em represália, houve a aprovação pelo Parlamento de Israel, em 2023, da reforma judicial proposta pelo governo do primeiro-ministro, a qual limita a atuação da Suprema Corte para anular medidas do Poder Executivo, impedindo, nesses casos, o uso do padrão legal da razoabilidade;

[2] após ver frustradas pela Suprema Corte suas intenções de militarizar a segurança pública e fragilizar a autoridade eleitoral autônoma, o presidente do México, Lopéz Obrador, conseguiu aprovar em 2024 no Parlamento, dominado por seu partido, a reforma do Judiciário, que prevê a redução do número de juízes da Suprema Corte de 11 para nove, com a eleição direta dos magistrados pelo povo, redução do período de mandato de 15 para 12 anos e eliminação das duas salas da corte, que só deliberará no plenário principal com sessões públicas;

[3] a insatisfação do Congresso Nacional dos Estados Unidos com a decisão proferida em 1964 pela Suprema Corte, no caso Reynolds v. Sims, que, ao afirmar o princípio “um homem, um voto”, redesenhou distritos eleitorais, prejudicando parlamentares e partidos que se beneficiavam do sistema antigo, levou o Senado a emendar proposição legislativa aprovada na Câmara, que aumentava os vencimentos dos juízes federais em $ 7.500, reduzindo esse aumento para $ 2.500;

[4] no período da República Velha no Brasil, o presidente Floriano Peixoto partiu para um duro ataque institucional ao Supremo Tribunal Federal, deixando de nomear os sucessores dos ministros que se aposentaram, circunstância que deixou o tribunal sem quórum para decidir questões importantes. No final de 1893, o presidente nomeou um médico (Barata Ribeiro), o que provocou a rejeição de sua nomeação pelo Senado;

[5] Após a Corte Constitucional alemã considerar, em 1995, contrária à liberdade de religião a fixação de crucifixos nas salas de aula em escolas públicas, na Bavária ocorreram protestos de líderes religiosos e políticos, culminando com mobilização popular que obteve 700 mil s contra a decisão judicial, pressionando o Parlamento a aprovar lei afirmando que o uso de crucifixos inseria-se nas tradições culturais e históricas da Bavária, valendo registrar que atualmente há mais crucifixos em escolas da Bavária do que havia antes da decisão;

[6] o STF, no RE nº 166.772, julgado em 1994, declarou inconstitucional a contribuição previdenciária do empregador sobre a remuneração paga aos trabalhadores sem vínculo empregatício. O referido julgamento causou um desequilíbrio atuarial no sistema previdenciário, na medida em que esses trabalhadores continuaram com a cobertura previdenciária, mas sem a respectiva fonte de custeio. Posteriormente, os Poderes Executivo e Legislativo conseguiram aprovar a Emenda Constitucional n. 20/1998 (Reforma da Previdência), que alterou o artigo 195, inc. I, alínea “a”, da Constituição, para itir a exação tributária do empregador sobre a remuneração paga a qualquer pessoa que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; e

Spacca

[7] o STF, no julgamento do Tema 1.031, para definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena, estabeleceu que a proteção aos direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas independe da existência de um marco temporal em 5/10/1988. Essa decisão desagradou os produtores rurais que se mobilizaram e foi então aprovada, no Parlamento, a Lei nº 14.701/2023, estabelecendo, no seu artigo 4º, o marco temporal em 5/10/1988 para reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas. A propósito, registre-se que essa questão é tão sensível que o Tema 1.031/STF foi julgado em 27/9/2023 e a Lei nº 14.701 foi promulgada pelo Senado em 27/12/2023, ou seja, apenas três meses após o julgamento.

Consensualismo

Este último exemplo lança luzes para mais uma espécie de diálogo institucional: o consensualismo na jurisdição constitucional, que é objeto de pesquisa em nosso pós-doutorado na Universidade Federal da Bahia [4]. No caso, a novel Lei nº 14.701/2023 tornou-se objeto de diversas ações de controle concentrado de constitucionalidade (ADC 87, ADI 7.582, ADI 7.583 e ADI 7.586). Ou seja, a questão constitucional retornou ao STF. Em decisão conjunta proferida pelo ministro relator dos processos, em 28/6/2024, foi criada uma Comissão Especial, como técnica de solução autocompositiva. Desde então tem sido realizadas diversas audiências nessa comissão, que se trata de um ambiente de diálogo do STF com os demais poderes e com a sociedade.

Assim, verifica-se que o diálogo institucional entre os poderes nacionais, envolvendo decisões das Supremas Cortes, é um dado da realidade. A sociedade da informação ou sociedade em rede abre a possibilidade para uma nova dimensão desse diálogo, qual seja, no plano internacional.

Castells observa que houve uma reconfiguração das relações sociais em torno das tecnologias de informação e de comunicação, a partir  dos anos finais do século 20, que impactou todos os campos da atividade humana. Assim, a sociedade atual é digital, hiperconectada e global: trata-se da sociedade da informação ou sociedade em rede [5]. A influência da tecnologia no atual estado da sociedade e a necessidade de compreender o ser humano numa realidade hiperconectada está reduzindo a distinção entre o off-line e o on-line. Campos afirma que o mundo está se tornando uma realidade digital e as plataformas estão se tornando as infraestruturas de todas as esferas da vida [6].

Repercussões práticas do diálogo no plano internacional

Portanto, na atual sociedade, o exercício das atribuições institucionais das Supremas Cortes não se limitam ao mundo físico e aos contornos territoriais nacionais, repercutindo nas relações jurídicas dentro das condições institucionais e tecnológicas da sociedade digital global. Citem-se, como exemplos, as decisões do STF de suspender a plataforma X (ex-Twitter), em 2024, e a plataforma Rumble, em 2025 (na Pet. 12.404 e na Pet. 9.935, respectivamente). Apesar de essas suspensões se limitarem juridicamente ao território nacional, as repercussões práticas desbordam dessa fronteira.

A Presidência dos Estados Unidos tem um canal oficial na Rumble, que é uma plataforma de vídeos alternativa ao YouTube. Esse canal oficial permite que o governo compartilhe informações e se comunique com o público. Daí por que, no caso da suspensão da Rumble, o governo norte-americano reagiu de duas formas:

[1] o Departamento de Justiça dos Estados Unidos encaminhou ao STF e ao Ministério da Justiça do Brasil uma carta, datada em 7/5/2025, na qual afirma que as decisões judiciais referentes à plataforma não têm efeito no território americano [7]; e

[2] em 21/5/2025, o secretário de Estado norte-americano, Marco Rubio, afirmou em audiência na Câmara que há uma grande possibilidade de os Estados Unidos imporem sanções contra o ministro do STF que determinou a suspensão da plataforma Rumble, por supostas violações à liberdade de expressão, sendo que, em 28/05/2025, o Departamento de Estado anunciou que iria restringir o visto americano a autoridades estrangeiras que pratiquem atos de censura a empresas ou residentes americanos [8].

Portanto, observa-se que o diálogo, na perspectiva das atribuições institucionais das Supremas Cortes, que antes era às instituições nacionais representantes dos poderes de cada Estado, atualmente extrapola os limites territoriais para açambarcar instituições de outros Estados.

A ampliação dos diálogos institucionais para o plano internacional parece ser mais uma decorrência da atual sociedade da informação ou sociedade em rede, na qual “a Internet muda o clássico conceito de território e a noção de soberania também sofre transformações” [9]. Trata-se de um fenômeno novo que merece reflexão, dada a importância das Supremas Cortes na manutenção do Estado Democrático de Direito.

 


[1] GODOY, Miguel Gualano de. Devolver a Constituição ao povo: crítica à supremacia judicial e diálogos interinstitucionais. Tese (Doutorado em Direito). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2015, p. 150

[2] CLÈVE, Clèmerson Merlin; LORENZETTO, Bruno Meneses. Diálogos institucionais: estrutura e legitimidade. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 2, n. 3, 2015, p. 183-189

[3] BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus Diálogos Constitucionais. A quem cabe a última palavra sobre o sentido da Constituição? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022, 3ª Ed., p. 286-314

[4] Para uma visão geral do assunto, recomendamos o seguinte livro: ABBOUD, Georges. Acordos no STF. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2025.

[5] CASTELLS, Manuel. The rise of de network society. The Information age: economy, society and culture. Vol. 1, editora Wiley-Blackwell, 2010, 2ª ed., p. 31

[6] CAMPOS, Ricardo. Metamorfoses do direito global: sobre a interação entre direito, tempo e tecnologia. São Paulo: Editora Contracorrente, 2023, p. 288

[7] Reportagem da Folha de S. Paulo publicada em 30 mai. 2025. Disponível aqui

[8] Reportagem da Folha de S. Paulo publicada em 07 jun. 2025. Disponível aqui

[9] LIMBERGER, Têmis. Direito e informática: o desafio de proteger os direitos do cidadão. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org). Direitos Fundamentais, Informática e Comunicação: algumas aproximações. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 200

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  • é pós-doutorando em Direito na Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutor em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-DF) e juiz federal da 20ª Vara de Salvador (BA).

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