Constituição, mudanças climáticas e dever estatal de descarbonização da economia e da matriz energética
13 de junho de 2025, 8h00
A atual crise climática decorrente do aquecimento global e das mudanças climáticas que vivenciamos hoje no Antropoceno representa um grande desafio, não só, mas aqui em especial, para a teoria e a práxis do Direito Constitucional e dos direitos fundamentais, inclusive a ponto de se falar de um novo (sub)ramo disciplinar, o assim designado Direito Climático.
A gravidade da questão climática e de suas consequências, como notório, é de tal magnitude que alguns países têm decretado um “estado de emergência climática”, como, por exemplo, se deu na União Europeia, por meio do Parlamento Europeu, em 2019, bem como em Portugal, na lei da política climática, Lei nº 98/2021.
O reconhecimento de um estado de emergência climático, por sua vez, tem encontrado amplo respaldo por parte da comunidade científica, conforme dão conta, por exemplo, os relatórios do Intergovernamental sobre Mudança do Clima da ONU (IPCC), designadamente, o 6º Relatório (AR6) divulgado entre 2021 (Grupo 1) e 2022 (Grupos 2 e 3), constatando, entre outros pontos dignos de nota, a maior intensidade e frequência dos eventos climáticos extremos já em curso.
Esse cenário real de danos já causados e de graves riscos à vida humana e ao meio ambiente biótico e abiótico, assim como à dignidade humana e aos direitos humanos e fundamentais, tem suscitado importante discussão doutrinária em torno do reconhecimento de um direito fundamental ao clima limpo, saudável e seguro, como derivado do regime constitucional de proteção ecológica e, em particular, do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, tal como preconizado no artigo 225 da CF/1988.
O pleito em questão, aliás, também tem ganho cada vez maior expressão em nível internacional, posto que também nesse contexto já se materializam apelos pelo reconhecimento de um direito humano a um clima limpo, saudável e seguro, conforme se verá com um pouco mais de detalhamento logo adiante.
Nessa perspectiva, o atual Estado de Direito Ecológico (Ecological Rule of Law) – também um Estado Democrático e Social, tomando-se aqui como paradigma a ordem constitucional brasileira – a a incorporar necessariamente também uma dimensão climática de proteção e promoção, inclusive em vista da salvaguarda dos direitos fundamentais numa perspectiva transgeracional e intertemporal, contemplando os interesses e direitos das futuras gerações tal como expressamente consagrado no caput do artigo 225 da CF/1988.
No concernente à dimensão objetiva dos direitos fundamentais, para além dos deveres estatais de proteção ecológica já expressamente consagrados no artigo 225 da CF/1988, o entendimento acima esboçado, tem também conduzido ao reconhecimento de deveres estatais de proteção climática. Note-se que os deveres de proteção referidos exigem práticas resolutivas “amigas do clima”.
Direito Climático ‘Sem Fronteiras’
Nesse sentido, colaciona-se a decisão do STF quando do julgamento da ADPF 708/DF (Caso Fundo Clima), em que, além disso, foi consolidado o entendimento de que os tratados internacionais em matéria ambiental, como, por exemplo, a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas (1992) e o Acordo de Paris (2015), constituem “espécie” do “gênero” tratados internacionais de direitos humanos e, portanto, gozam da mesma hierarquia normativa supralegal.

Outro aspecto a ser adiantado é que a despeito do enfoque aqui prevalentemente constitucional e brasileiro, a temática versada se insere num contexto necessariamente marcado por um intenso diálogo entre ordens jurídicas (com crescente relevância daquilo que se tem chamado de um diálogo jurisprudencial e entre tribunais), ademais da perspectiva multinível, que caracteriza a interação entre o Direito Internacional (em nível universal e regional) e o Direito interno dos Estados. Quiçá, como sugerido por Vasco Pereira da Silva no campo do Direito Constitucional, é possível falar de um Direito Climático “Sem Fronteiras”.
Cuida-se, portanto, de uma abordagem constitucional e normativa de múltiplos níveis, o que, no tocante ao problema da proteção e da promoção de um meio ambiente equilibrado e saudável e, em particular, de condições climáticas íntegras e seguras, assume especial relevância, dado o fato de que tal problema apresenta dimensão global e, independentemente do nível de participação individual de cada Estado (menor ou maior) em termos de emissões de gases de efeito estufa, cada um deve contribuir para a superação da crise climática planetária.
Ressalta-se, nesse sentido, que o Estado concebido pela CF/1988, tal como facilmente se percebe mediante simples leitura do artigo 4º, que dispõe sobre os princípios que regem as relações internacionais brasileiras, é – ou pelo menos foi assim concebido pelo Constituinte – um Estado constitucional aberto e cooperativo.
Outrossim, é de todos conhecido que o bem jurídico clima refere-se, em primeira linha, à “atmosfera global ou planetária” , o que foi assim considerado pela Corte Internacional de Justiça, na Opinião Consultiva sobre a Legalidade da Ameaça ou Uso de Armas Nucleares (1996), quando se reconheceu que a proteção do meio ambiente integra o corpus do Direito Internacional, por meio da obrigação geral dos Estados de garantir que as atividades dentro de sua jurisdição e controle respeitem o meio ambiente de outros Estados ou de áreas fora do controle nacional. Da mesma forma, a corte reconheceu que “o meio ambiente não é uma abstração, mas representa o espaço de vida, a qualidade de vida e a própria saúde dos seres humanos, incluindo as gerações por nascer”.
Assim como o meio ambiente não se trata de uma “abstração”, também o clima ou sistema climático é algo concreto e está diretamente relacionado à salvaguarda dos interesses e direitos mais básicos do ser humano (gerações presentes e futuras), como a vida, a saúde, a integridade física e psíquica, entre outros.
Dever de descarbonização
A atribuição da condição de bem jurídico constitucional ao meio ambiente e ao clima encontra forte amparo já no próprio regime de proteção ecológica estabelecido pelo artigo 225 da CF/1988, em particular, no tocante ao dever de proteção e salvaguarda dos “processos ecológicos essenciais”, tal como expressamente consignado no inciso I.
É nesse contexto que assume relevo a inclusão, por meio da Emenda Constitucional 123/2022, de um novo inciso VIII no § 1º do artigo 225 da CF/1988, que justamente contempla textualmente os deveres estatais de proteção climática do Estado brasileiro, no sentido de promover a descarbonização da economia e a neutralização climática, relativamente às emissões de gases do efeito estufa decorrentes da queima de combustíveis fosseis, ao “manter regime fiscal favorecido para os biocombustíveis destinados ao consumo final, na forma de lei complementar, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à incidente sobre os combustíveis fósseis, capaz de garantir diferencial competitivo em relação a estes (…)”.
A relação direta entre uma transição energética, no sentido da substituição de energias não renováveis por renováveis de há muito tem sido reconhecida e ocupado uma posição privilegiada na agenda política e econômica.
Por isso, dentre os deveres de proteção estatais do meio ambiente e do sistema climático, há que reconhecer um dever (no caso, na ausência de previsão constitucional específica, de um dever implícito) de proteção e de promoção das fontes de energia renováveis disponíveis e de uma gradual e efetiva descarbonização da economia e da matriz energética, rumo a uma neutralidade climática.
O novo inciso VIII do § 1º do artigo 225, não consiste em si mesmo numa dever geral de descarbonização da matriz energética e da economia, mas sim, trata-se de um dever específico e que ostenta caráter instrumental em relação aquele fim, visto que se cuida de uma forma, dentre outras, de alcançar a tão almejada neutralidade climática. A medida em questão expressa os deveres estatais de mitigação, no sentido da redução da emissão de gases do efeito estufa derivada da queima de combustíveis fosseis, inclusive estimulando mudanças e inovações tecnológicas na matriz energética brasileira rumo ao uso progressivo de energia limpas.
Nesse mesmo contexto, é de se questionar se não será mesmo possível e mesmo necessário, para além de um dever estatal, reconhecer um direito à descarbonização da matriz energética e da economia e à neutralização climática e mesmo de um direito à energias renováveis?
Seja como for, o fato é que mesmo se permanecendo na esfera da dimensão objetiva, tais deveres de proteção e promoção são diretamente vinculativos em relação a todos os órgãos estatais, inclusive com impacto nas relações privadas. Não se trata, portanto, de livre escolha política, ainda que a política deva e possa, com primazia, formatar a melhor maneira de concretizar tais deveres de proteção. Existe assim uma redução da esfera de discricionariedade do poder público na matéria, ademais da necessidade de uma permanente atualização e adequação das medidas engendradas.
Embora questionável se a nova norma constitucional acima citada estabeleça um direito individual subjetivo ao cidadão para exigir direta e coercitivamente a realização de tais fins, o fato é que, pelo menos, poderá gerar a inconstitucionalidade de normas ou outras medidas em contrário e mesmo a responsabilização pela omissão. Como se dá em relação aos deveres de proteção estatais em geral, a inação pura e simples e/ou a ação manifestamente ineficaz implica violação da proibição de proteção insuficiente e atrai o controle judicial.
A iniciativa do poder de reforma constitucional brasileiro, embora inovadora, não é a única de que se tem notícia, pois também na Alemanha, mediante uma recente alteração da Lei Fundamental, ocorrida em 22/3/2025, foi inserido um novo artigo 143 h, que autoriza a União a instituir fundos extraordinários para investimentos adicionais para atingir a neutralidade climática até 2045, no montante de até 500 bilhões de euros. De todo modo, diferentemente do que se deu no caso brasileiro, o texto da Lei Fundamental não formula um dever, mas autoriza a União a implementar a medida.
No plano infraconstitucional, para além de projetos de lei em fase de tramitação no Congresso Nacional, há que referir a recente aprovação da Lei nº 15.042 de 11/12/2024, que estabelece as bases para o mercado regulado de carbono no Brasil e institui o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE). Da mesma forma, merece destaque a Lei nº 15.103/2025 que cria o Programa de Aceleração da Transição Energética (Paten), bem como a Lei nº 15.097/2025, que versa sobre a produção de energia eólica offshore.
Sem que se possa aqui desenvolver o tema e tendo em conta que a legislação referida não se encontra imune a críticas, a despeito dos avanços, o fato é que aos poucos – pelo menos é o que se espera – tem ocorrido algumas reações positivas e importantes no que diz respeito à descarbonização da matriz energética e da economia. Afinal, os custos ecológicos (poluição generalizada dos recursos naturais, mudanças climáticas, perda da biodiversidade, desmatamento das florestas tropicais etc.) têm sido sistematicamente negligenciados e deixados “de fora” do cálculo econômico. Não por outra razão, tais “custos ecológicos” são conceituados como “externalidades” da atividade produtiva até negligenciados no cálculo do Produto Interno Bruto (PIB).
Ao fim e ao cabo, o que se espera é uma pelo menos gradual e substancial reversão dessa lógica que acaba, bem-vistas as coisas, sequer servindo ao próprio progresso econômico, que dirá ao progresso humano das presentes e futuras gerações.
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