O papel da advocacia pública no exercício do Poder Executivo
13 de junho de 2025, 15h24
A proposta de que a advocacia pública deve se envolver ativamente na construção e garantia de políticas governamentais vem ganhando impulso, inclusive com sugestões para ser formalizada como um objetivo institucional. Diante da relevância do tema, este artigo analisa a interação dessa ideia com o exercício do Poder Executivo e a necessidade de os advogados públicos receberem as diretrizes e proteções necessárias para efetivá-la.
O estudo também observa alguns aspectos históricos da relação entre istração pública e o Poder Executivo nos Estados Unidos e no Brasil, considerando que ambos os países adotam regimes constitucionais republicanos e presidencialistas, compartilhando, assim, problemas semelhantes.
Política e istração pública nos EUA e no Brasil
Na primeira metade do século 19, firmou-se nos EUA o entendimento de que o partido vitorioso nas eleições teria o direito de substituir e nomear todos os servidores públicos federais conforme sua vontade política [1]. Essa configuração, denominada spoils system, ficou marcada pela presença de chefes políticos (bosses) locais e regionais que mantinham as estruturas partidárias também pelo controle da istração pública, com os servidores destinando parte de seus salários para organizações partidárias (patronage system) [2].
Esse modo de organizar o poder público ocorria tendo como pano de fundo a governança da sociedade por meio da divisão entre tribunais e partidos políticos (courts and parties), na qual as organizações partidárias definiam os integrantes dos Poderes Legislativo e Executivo e da istração pública, enquanto os magistrados, por meio do Poder Judiciário, balizavam o funcionamento do Estado, julgando a aplicação das leis [3].
A percepção das insuficiências desse sistema, que se tornou pronunciada após o assassinato de um presidente da República sob a alegação de não nomear um cabo eleitoral, levou a reformas para criar uma istração pública estável nos EUA, capaz de realizar os serviços públicos com apoio em conhecimento técnico especializado [4]. Desse modo, a istração pública ou a compreender cargos públicos de livre nomeação, incumbidos de formular e dirigir políticas (policymakers), e cargos para os demais servidores, contratados por seleção impessoal e com demissão condicionada à justa causa apurada mediante devido processo legal [5].
Ao longo do século 20, a istração pública nos EUA foi estruturada com predominância desses princípios, inclusive com a criação de órgãos independentes ao presidente da República. No entanto, essa concepção atualmente enfrenta críticas, entre elas a de que a dimensão técnica nem sempre prevalece. A influência política nas nomeações para cargos de chefia pode reintroduzir a variada intervenção dos membros dos Poderes na istração pública. Isso, por sua vez, facilita a interferência dos partidos políticos e seus apoiadores, ampliando o risco de captura por interesses que divergem de sua missão legalmente estabelecida.
As críticas ao assim chamado istrative state, nos EUA, resultam em diversas ações, que vão desde um controle mais rigoroso das decisões da istração pública, exigindo justificativas específicas, até a eliminação de substancial parte de seus órgãos, acusados de implementar as demandas de grupos mais bem posicionados em detrimento do bem comum [6].
No Brasil, principalmente a partir do primeiro governo de Getulio Vargas, estruturou-se uma istração federal mais abrangente, internalizando a concepção de sua total subordinação ao presidente da República. Essa opção se manteve por sucessivos governos e Constituições, inclusive a atual [7]. Nela, essa hierarquia, construída com algumas exceções (universidades, Ministério Público), foi posteriormente mitigada pela adoção posterior de órgãos com independência decisória em relação ao presidente da República (autarquias em regime especial), um modelo com inspiração em institutos similares adotados pelos EUA.
No que concerne aos servidores da istração pública brasileira, incorporou-se o critério pelo qual os cargos de direção são de nomeação discricionária, e, em alguns casos, sem pré-condições de antiguidade ou mérito, mesmo quando envolverem servidores estáveis. Nesse ordenamento, ainda que diante de corpos formados por tais servidores, a capacidade técnica pode ser combinada com influência política ao se selecionar os respectivos es.

Uma relevante consequência da organização istrativa nos dois países é a de que o presidente da República tem na istração pública um recurso fundamental para o exercício de suas atribuições constitucionais. A implementação de sua agenda política pode envolver a nomeação de servidores para cargos de direção conforme os contextuais arranjos de poder, no intuito de superar os obstáculos que podem ser postos no manejo das estruturas estatais.
A partir dessa composição, também se observa, no Brasil, conflitos semelhantes aos que hoje acontecem nos EUA, seja pela exigência de melhores justificativas das decisões istrativas [8], seja pela negação dos recursos necessários ao regular funcionamento da istração pública (defund), fazendo com que os órgãos istrativos atingidos definhem sem serem formalmente extintos, estratégia que aqui se mostra mais simples de realizar, dadas as características do sistema jurídico-istrativo brasileiro.
Implementação de decisões políticas no cumprimento das leis
A ocupação de cargos de direção istrativa como um resultado de arranjos políticos paulatinamente redireciona os servidores que almejam ocupar tais posições — e nelas permanecer — a buscar o necessário apoio externo, principalmente orçamentário, o que pode se tornar um fator que influencia a ação istrativa [9]. Com isso, ao lado das teorias istrativas, às vezes mostra-se útil, no campo político, ressignificar a noção de serviço público para concebê-lo como implementação de políticas, levando em conta tal influência.
Essa noção, porém, sofre constrangimentos no campo jurídico pelas regras aplicáveis à atuação da istração pública, particularmente pelos limites constitucionais e legais pertinentes a atos istrativos. A hermenêutica de que diferentes níveis normativos formariam um todo uniforme para executar políticas, desse modo implicando que esses atos teriam a mesma força normativa dos estatutos que lhe são superiores, normalmente opera quando não ocorre real contradição entre eles [10]. Nos outros casos, tal argumento se fragiliza diante da hierarquia das normas, que tem como uma de suas finalidades centrais o equilíbrio entre os Poderes, permitindo que a decisão política a ser posta em ato infralegal possa ser questionada por órgãos de controle, tanto internos e externos, inclusive pela própria advocacia pública.
Desse modo, o Estado brasileiro sempre manteve um serviço jurídico para apoiar a atuação de seus agentes, no intuito de melhor realizar a necessária adequação entre vontade política e as leis nacionais. Nota-se que, quanto mais se ite a supremacia das normas jurídicas para conduzir a atuação estatal (rule of law), maior se torna a importância dessa função pública.
Advocacia pública e Poder Executivo
Na tradição liberal, uma tarefa central do Poder Executivo é a de cuidar para que as leis sejam cumpridas [11], devendo garantir essa observância, inclusive perante o Poder Judiciário. No Brasil, parte dessa atribuição é concretizada por um órgão independente, o Ministério Público, que atua não apenas na aplicação da lei penal, mas também na de outros estatutos de grande importância social [12]. Essa autoridade é acompanhada de orientações e proteções constitucionais, tanto ao órgão istrativo como aos seus membros, de modo a prevenir abusos e interferências indevidas em suas funções.
É importante registrar, em contraste, que não houve idêntica organização istrativa nos EUA, país em que os federal attorneys permanecem subordinados ao presidente da República [13]. Esse aspecto contextualiza, por exemplo, a notícia da demissão de vários integrantes do serviço federal por participarem de ações contra o candidato presidencial que posteriormente venceu as eleições, demissões que ocorreram sem necessariamente se avaliar se tais ações seriam juridicamente cabíveis ou não [14].
Retornando ao ordenamento brasileiro, observa-se que o Poder Executivo, exercido pelo presidente da República, geralmente necessita da istração pública para garantir o cumprimento das leis. Nas etapas em que possa ocorrer dúvida ou conflito sobre o entendimento dessas leis, ou ainda, o seu debate perante o Poder Judiciário, é imprescindível a participação da advocacia pública, consoante suas funções constitucionais de representação da União e de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo [15].
Advocacia pública e função executiva
Com a advocacia pública empregando a sua capacidade técnica autônoma de orientar o significado das normas não apenas em tarefas de assessoramento, mas também realizando sua aplicação prática a casos concretos, ela representará a União, em especial, o Poder Executivo, no seu dever de fazer cumprir as leis. Dessa forma, participará ativamente tanto na sua formulação de regras adicionais (rulemaking) como na sua implementação em casos individuais (adjudication), sempre com referência ao dever maior de o Estado respeitar e concretizar os direitos dos istrados.
Isso pode ser executado não apenas pela participação na promulgação de atos normativos gerais, mas também ao conduzir o oferecimento de ações judiciais, transações istrativas ou judiciais, ou ainda, deferir ou indeferir pleitos feitos ao Estado. Sublinhe-se que, em algumas hipóteses, tal aplicação pode ocorrer de modo final e irreversível.
Essas atividades denotam que os agentes que implementam o Poder Executivo atuando com a capacidade de determinar, no âmbito desse poder, como as leis devem ser executadas de modo definitivo, necessitam de normativos institucionais que os orientem e resguardem dos riscos que acompanham tal responsabilidade. Com efeito, notícias recorrentes revelam como o exercício de poder estatal expõe os agentes públicos a pressões dos mais diversos grupos sociais, nacionais e internacionais, inclusive aquelas efetuadas pelo crime organizado.
Ao se traçar um paralelo com órgãos incumbidos da materialização do Poder Executivo nessa extensão, torna-se evidente que tais encargos demandam garantias proporcionais à sua importância e à exposição a interferências indevidas e tentativas de captura. A ausência dessas garantias pode ampliar a vulnerabilidade do Estado, especialmente considerando o papel crucial da advocacia pública na defesa jurídica dos Poderes da República.
Por tudo, revela-se aconselhável, no debate que se seguirá a respeito do aperfeiçoamento da legislação, assegurar que a advocacia pública e seus membros encontrem na lei as orientações e defesas necessárias para cumprir sem percalços o que determina a Constituição de 1988, como já posto pelo Supremo Tribunal Federal:
“(…) Com efeito, as funções essenciais à Justiça possuem capítulo próprio na Carta Magna (…) (Capítulo IV do Título IV, referente à Organização dos Poderes), e subdividem-se em quatro seções: (i) Ministério Público (arts. 127 a 130); (ii) Advocacia Pública (arts. 131 e 132); (iii) Advocacia (art. 133); e (iv) Defensoria Pública (arts. 134 e 135). Não obstante as peculiaridades de cada uma delas, a reunião, sob um mesmo capítulo intitulado Funções Essenciais à Justiça, não se justifica, apenas, por se referirem a carreiras jurídicas integradas exclusivamente por membros bacharéis em direito. É que os referidos agentes públicos ostentam a missão de assegurar, cada qual no seu âmbito e por intermédio da provocação jurisdicional, todo o tecido de interesses constitucionais, seus valores e princípios. Portanto, são indispensáveis para o resguardo de áreas sensíveis do ordenamento jurídico, mormente no campo da garantia dos direitos fundamentais e na concretização dos objetivos do Estado Democrático de Direito” [16].
Conclusão
Em conclusão, é essencial reconhecer que a advocacia pública desempenha um papel fundamental na atribuição de o Poder Executivo guardar as leis, pelo que seus membros devem receber as diretrizes e proteções necessárias a essa tarefa. Ao considerar reformas legislativas que podem inclusive direcionar seus objetivos e funções, mostra-se imperativo que nelas se fortaleça o compromisso da advocacia pública com a ordem de valores e princípios constitucionais em vigor, com primazia à defesa dos direitos fundamentais e aos propósitos constitucionalmente estabelecidos ao Estado brasileiro.
*Este artigo é obra de cunho acadêmico e não reflete necessariamente a posição das instituições nas quais o autor trabalha
[1] Como defendido pelo presidente Andrew Jackson (1829-1841)) Cf. aqui.
[2] FENLON, Christopher. The Spoils System in Check. Cardozo Law Review, vol. 30, no. 5, May 2009.
[3] SKOWRONEK, Stephen. Building a New American State. Cambridge: Cambridge University Press, 1982.
[4] Cf. o assassinato do presidente James Garfield em 1881 e a edição do Pendleton Act em 1883.
[5] Cf. atualmente, a Executive Order 14.171, de 20.01.2025, a qual permite requalificar cargos istrativos e inseri-los em classe de livre disposição, denominada de “Policy/Career”, que envolve os que ocuparem “(…)positions of a confidential, policy determining, policy-making, or policy-advocating character.”
[6] Cf. os debates entre as assim denominadas public interest theory e public choice theory.
[7] Constituição Federal de 1988. Art. 84, II.
[8] Cf., por exemplo, ADI 5.447 STF. Rel. min. Roberto Barroso. Julgamento em 22.05.2020.
[9] BERRY, Christopher; GERSEN, Jacob. Agency Design and Political Control. Yale Law Journal, vol. 120, no. 4, 2011.
[10] STEWART, Richard. The Reformation of American istrative Law. Harvard Law Review, vol. 88, no. 8, June 1975.
[11] Constituição Federal de 1988. Art. 78.
[12] Constituição Federal de 1988. Art. 129.
[13] Sem embargo de que, nas unidades federadas, a chefia das procuradorias pode decorrer de escrutínio popular.
[14] Cf., por exemplo, Justice Dept. Fires Prosecutors Who Worked on Trump Investigations. Aqui.
[15] Constituição Federal de 1988. Art. 131.
[16] RE 663.696/MG – STF – Repercussão Geral. Rel. Min. Luiz Fux. Julgamento em 28.02.2019.
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