O exemplo do colapso asteca e a hora e a vez dos predadores da internet
12 de junho de 2025, 13h22
*Por João Céu e Silva, do jornal português Diário de Notícias
A tabela sa de vendas de livros não é tão ridícula como a portuguesa na maior parte das semanas porque os ses são grandes leitores, daí que o primeiro lugar do seu top esteja dominado pelo mais recente ensaio de Giuliano da Empoli, A Hora dos Predadores — mesmo que esse lugar cimeiro nos livros de bolso esteja na mão de Frieda McFadden com A Criada —, em que o autor desfaz os tempos que vivemos com uma análise em muito dedicada à Inteligência Artificial, aos donos das grandes tecnológicas e ao desmando em curso da classe política.
Da Empoli já se mantivera nesse primeiro lugar de vendas com O Mago do Kremlin, um romance em que dá protagonismo a um dos confidentes de Putin e aos seus planos expansionistas, livro que tendo saído logo a seguir à invasão da Ucrânia pela Rússia se transformou num bom explicador do pensamento e estratégia do presidente russo.
A Hora dos Predadores não é ficção, se bem que ao lerem-se muitas destas páginas se pergunte se o autor não estará a ficcionar e se é uma narrativa apenas firmada sobre a realidade. Afinal, Da Empoli vai vasculhar a história e dela retira o famoso clã dos Bórgias como uma das chaves para compreender a política e as sociedades da atualidade, porque essa família do Renascimento ainda é recordada por uma governação em que a corrupção dominava, bem como toda a espécie de golpes e de traições, para se manterem poderosos.
Considera Da Empoli, portanto, que a espécie dos Bórgias nunca terá desaparecido, sendo que nos últimos anos os seus métodos têm regressado em força. Como escreve: “As lições que os Bórgias de todos os tempos podem retirar são demasiado numerosas, mas uma delas destaca ‑se de todas as outras: a primeira lei do comportamento estratégico é a ação”.

Em A Hora dos Predadores, os exemplos de quem, onde e como, percorrem as páginas todas e não se esquece de nomear Lisboa no capítulo Maio de 2023, devido à realização da reunião anual do Clube Bilderberg na capital portuguesa, que reuniu 130 grandes figuras do mundo do negócio e da política.
Aproveita a reunião para enquadrar as características de que os grandes de hoje se apropriaram de um caldo em que só “os borgianos se sentem à vontade”. O capítulo “português” reúne uma figura mundialmente conhecida e dois sábios relacionados com a Inteligência Artificial.
O mais destacado é Henry Kissinger, que ao chegar a centenário se interessou por estes temas das tecnologias e sobre quem Da Empoli escreve assim: “Kissinger é mais coriáceo”. “O seu corpo está tão deteriorado que precisa de ajuda para se levantar. E a sua voz cavernosa, célebre desde sempre pela sua ininteligibilidade, está reduzida a um borborismo quase indiscernível. Na véspera dos seus cem anos, ele poderia estar em qualquer outro lugar. Em vez disso, está ali, no salão de um hotel de Lisboa, a discutir a inteligência artificial. Inclusive as suas “consequências”, das quais tem certamente consciência de que só irá ver uma muito pequena parte.”
Os dois sábios são o CEO da OpenAI, Sam Altman, e o líder da DeepMind, Demis Hassabis, alegadamente capazes de restabelecer o caos em que o mundo se encontra devido à internet e à inteligência artificial, como explica: “Altman e Hassabis [apresentam à plateia adormecida pelo tempo concedido ao tema] uma alternativa: a harmonia do mundo pode ser restabelecida em todo o seu esplendor. Se a IA também se alimenta do caos, contudo ela promete em troca uma nova ordem; um governo racional da sociedade, decisões tomadas com base nos dados, em teoria isso assemelha‑se ao sonho dos tecnocratas”.
A inteligência artificial não é o tópico principal deste livro, mesmo que seja recorrentemente repescada, tal como a gestão política autocrática das crises e dos conflitos militares e de uma sociedade imersa em informação inútil. Da Empoli serve-se de todo este caos para explicar o título do seu livro da seguinte forma:
“Na hora dos predadores, possuímos cada vez mais informações e somos cada vez menos capazes de prever o futuro. Os nossos anteados viviam em sociedades muito mais pobres em dados, mas podiam fazer planos para si mesmos e para os seus descendentes. Nós temos cada vez menos ideia do mundo no qual iremos acordar amanhã de manhã.”
Insiste: “Na hora dos predadores, o equilíbrio rebentou. As novas elites tecnológicas, os Musks e os Zuckerbergs, nada têm a ver com os tecnocratas de Davos. A filosofia de vida deles não se baseia na gestão competente do que existe, antes numa sagrada vontade de semear a confusão. A ordem, a prudência e o respeito pelas regras são considerados anátema por aqueles que aprenderam a andar depressa e partindo as coisas, segundo o lema do Facebook”.
A governação é uma das principais análises que Da Empoli tenta deixar esclarecida, começando o livro por um tempo muito anterior ao presente, o do desembarque de Hernán Cortés nas proximidades da capital do império asteca. Dá o exemplo de Montezuma 2º que convocou com urgência os seus conselheiros e fez o que “os políticos, de todos os tempos, fazem nesse gênero de situações: decidiu não decidir”.
Conclui que essa é uma atitude que se repete nas últimas três décadas nas democracias ocidentais, sendo que os governantes se comportaram perante os “conquistadores” da tecnologia como os astecas do século 16, submetendo-se e esperando por benefícios que nunca virão. Trump não é esquecido pelo autor:
“Hoje, as nossas democracias ainda parecem sólidas, mas ninguém pode duvidar de que o mais difícil ainda está para vir. O novo presidente americano ou a encabeçar um cortejo de autocratas descomplexados, de conquistadores da tecnologia, de reacionários e de teóricos da conspiração impacientes por chegarem a vias de facto. Abre‑se diante de nós uma era de violência sem limites.”
Não será por acaso que Da Empoli registra o número do aumento de despesas de armamento dos últimos cinco anos: 34% em todo o mundo.
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