Opinião

Antissionismo, antissemitismo e armadilha da generalização: discussão urgente

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  • é advogada cientista social professora especialista em gestão estratégica de compliance e integridade corporativa e em direitos humanos pela Universidade Federal do ABC especialista em Direito Tributário pela FMU professora universitária orientadora convidada na UFMG coordenadora do 1º Curso de Compliance e direito Antidiscriminatório da Escola Superior de Advocacia de São Paulo vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial Ordem dos Advogados do Brasil do Estado de São Paulo conselheira membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da Fiesp e mestranda na USP  na linha de pesquisa de Direitos Humanos e Racialidades.

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8 de junho de 2025, 6h30

A complexidade do debate envolvendo o Estado de Israel, o povo judeu e a crítica ao sionismo exige não apenas atenção técnica, mas responsabilidade ética, política e histórica. Em tempos de polarização e discursos simplistas, o uso do termo “sionista” como insulto tem camuflado práticas modernas de antissemitismo, que merecem ser debatidas com profundidade.

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soldado segurando bandeira de Israel

Desde o julgamento Ellwanger, em 1989, um ano após a redemocratização, o primeiro caso de racismo julgado sob a égide da Constituição Federal de 1988, no qual o Supremo Tribunal Federal reconhece o antissemitismo como crime imprescritível, equiparando-o ao racismo. A Lei nº 7.716/1989 tipifica o antissemitismo como preconceito religioso, étnico ou nacional.

O uso do termo “sionista” como sinônimo de opressor ou a ocupar o espaço que, antes, era abertamente preenchido pelo antissemitismo clássico. Esse deslocamento semântico mascara o preconceito e permite que a violência simbólica e discursiva contra judeus continue a se reproduzir sob um verniz de crítica política.

Isso não significa, de modo algum, que críticas ao Estado de Israel ou às ações de seus governos sejam ilegítimas. Pelo contrário. Essas críticas são necessárias e feitas por diversos setores da própria sociedade israelense. No entanto, transformar o termo “sionismo” em uma categoria absoluta, usada para desumanizar judeus em qualquer parte do mundo, é reforçar o ódio e a desinformação.

Assim como as críticas dirigidas ao sistema internacional de direitos humanos possuem fundamentos históricos legítimos. No entanto, frequentemente deixam de atacar os argumentos ou estruturas que sustentam a opressão, voltando-se contra grupos étnicos inteiros, e é exatamente nesse deslocamento que se enraíza o racismo. Ao não delimitar corretamente o alvo das críticas, transfere-se a atenção do algoz para a vítima, operando uma lógica perversa e diversionista, própria de estruturas de dominação.

É inegável que, durante o julgamento de Nuremberg, enquanto se denunciava o genocídio dos judeus na Europa, povos africanos e americanos, por exemplo, continuavam a ser sistematicamente dizimados em contextos coloniais. Essa crítica, longe de ser infundada, é necessária e precisa ser formulada com rigor técnico, respeito histórico e contundência analítica. Inclusive, revelando que outros tribunais internacionais deveriam ser acionados para responsabilizar as ações de líderes racistas e genocidas.

É igualmente verdade que o sistema internacional contemporâneo de direitos humanos foi repensado a partir da barbárie do Holocausto, o que possibilitou uma nova gramática de reconhecimento e humanização. Contudo, essa inflexão histórica não se estendeu, na mesma medida, a outros povos historicamente desumanizados, como os africanos e os indígenas das Américas. Essa seletividade racial, presente nas abordagens eurocêntricas e estadunidenses do direito internacional, deve, sim, ser objeto de crítica acadêmica e política. No entanto, é crucial reafirmar: humanizar um povo não constitui, em si, um problema.

O problema reside em proclamar a universalidade dos direitos humanos sem efetivamente incluir, nessa universalidade, a pluralidade de experiências, fatos históricos, culturas e identidades humanas. Essa crítica é legítima, atual e amplamente sustentada por intelectuais e ativistas oriundos de populações racializadas, que apontam para o viés estruturalmente excludente das normas internacionais vigentes.

Ainda assim, torna-se necessário alertar que negar o Holocausto como um evento histórico catalisador de mecanismos de proteção estatal, ou minimizar sua gravidade afirmando que “não foi tão expressivo assim”, configura expressão clara de antissemitismo. O reconhecimento da dor e do genocídio de um povo não deve servir de obstáculo ao reconhecimento de outros processos genocidas históricos, tampouco pode ser instrumentalizado para relativizar a tragédia propagada pelo nazismo.

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A crítica deve ser técnica, contextual e não dirigida a todo grupo, porque há pluralidade, como em todos os grupos raciais e étnicos. Generalizações e ataques identitários mascarados de crítica política são inaceitáveis, além de serem crimes imprescritíveis no Brasil.. E mais: são perigosos. O antissemitismo contemporâneo se esconde em discursos aparentemente “críticos” e “engajados”, que transitam livremente entre a extrema direita e a extrema esquerda, mas que, na prática, reforçam a estrutura racial e colocam em risco a segurança simbólica e física de judeus em todo o mundo.

Estratégia de distração

Um exercício comparativo que nos provoca a coerência: desde a invasão do Brasil, há um constante e vigente processo de genocídio de povos indígenas. Temos povos que foram completamente exterminados na última década, como o último indígena do povo tanaru, encontrado morto em 2022, e outros que estão atualmente ameaçados de extinção, em conflitos ativos. É possível e provável que, enquanto este artigo esteja sendo lido, comunidades e territórios indígenas estejam sob ataque, porque isso acontece todos os dias no Brasil. Nem por isso todos os brasileiros são responsabilizados por esse genocídio. Imagine se por isso, se defende-se o “antibrasileirismo”, o extermínio do povo brasileiro, seria absurdo.  A pluralidade que se reconhece no povo brasileiro também deve ser reconhecida em relação ao povo judeu. Assim como a distinção entre líderes estatais e seu povo.

O pensamento de Antonio Gramsci oferece importantes ferramentas teóricas para compreender os deslocamentos discursivos que operam no campo das lutas simbólicas contemporâneas. A partir do conceito de bloco histórico, compreendido como a articulação entre sociedade civil (onde se forma o consenso ideológico) e sociedade política (onde se exerce a coerção), é possível observar como determinadas narrativas ganham força hegemônica ao estabelecerem sentidos comuns sobre o mundo. Nesse contexto, a instrumentalização do discurso antissionista para disfarçar práticas de antissemitismo opera como uma estratégia de distração hegemônica.

Em vez de direcionar a crítica às estruturas políticas e econômicas que sustentam o apartheid e o colonialismo em múltiplas regiões do mundo, há um deslocamento simbólico que recai sobre a identidade coletiva dos judeus, transformando um povo historicamente oprimido em bode expiatório universal. Essa operação retórica serve, paradoxalmente, à manutenção da hegemonia global de poderes coloniais e imperialistas, que seguem operando sob outras formas, enquanto grupos racializados e comunidades étnicas são colocados em antagonismo artificial.

Como Gramsci alertava, a hegemonia se sustenta não apenas pela força, mas pela direção intelectual e moral que uma classe exerce ao produzir o consenso. Assim, ao invés de combater a lógica imperialista, discursos generalizantes contra judeus acabam por reforçar os alicerces do bloco histórico dominante, desmobilizando alianças críticas interétnicas e desviando o foco do enfrentamento aos verdadeiros mecanismos globais de opressão.

A história está repleta de nações que ainda hoje não possuem Estado e lutam por um, o sionismo em si, é legítimo, e a reivindicação de um Estado, também. Os curdos, por exemplo, somam mais de 26 milhões de pessoas dispersas por Armênia, Irã, Iraque, Síria e Turquia, que somam a maior nação sem estado do mundo: o Curdistão. Os palestinos, tibetanos, bascos, chechenos, ciganos, indígenas e caxemires também figuram nessa lista. Cada um desses povos carrega lutas legítimas, experiências de opressão e reivindicações históricas voltadas à autodeterminação territorial, ou seja, a reivindicação de um Estado é plausível, os meios para se garantir isso, podem e devem ser questionados se excederem limites humanos.

Reinvenção do antissemitismo

A autora Deborah Lipstadt, historiadora e professora da Emory University, alerta para as formas contemporâneas de negação do Holocausto e demonstram como o antissemitismo se reinventa em discursos políticos aparentemente neutros, muitas vezes disfarçados sob a roupagem do antissionismo.

Lipstadt denuncia que a banalização ou distorção da memória do Holocausto contribui para uma nova forma de preconceito, menos explícita, mas igualmente perigosa. Amos Oz, intelectual israelense reconhecido internacionalmente por seu ativismo pacifista, é exemplo de como a crítica ao Estado de Israel pode coexistir com a identidade judaica e com a defesa dos direitos humanos.

Defensor da criação de dois estados soberanos e da coexistência entre israelenses e palestinos, Oz argumentava que o fanatismo, de qualquer lado, se nutre de respostas fáceis a problemas complexos. Sua analogia sobre dividir uma casa em dois apartamentos traduzia sua proposta pragmática e humanista de paz, ancorada não em utopias absolutistas, mas em soluções viáveis.

Nesse sentido, as contribuições de Lipstadt e Oz não apenas fortalecem a crítica ao antissemitismo velado, como também ajudam a reposicionar o debate em torno do sionismo e do direito à autodeterminação sem que isso recaia em discursos de ódio ou em apagamentos históricos.

Já Jonathan Sacks, rabino ortodoxo e filósofo de referência internacional no diálogo inter-religioso, ofereceu contribuições fundamentais para a compreensão da alteridade, da convivência pacífica e da complexidade identitária dos povos. Em suas obras, Sacks revelou como o antissemitismo é historicamente alimentado por contradições e estigmas infundados.

Em uma de suas reflexões mais emblemáticas, escreveu: “Os judeus eram odiados porque eram ricos e porque eram pobres; porque eram capitalistas e porque eram comunistas; porque eles se apegavam tenazmente a uma fé antiga e porque eram cosmopolitas sem raízes, acreditando em nada. O ódio não precisa de lógica. É uma doença da alma.”

Sua análise desconstrói a lógica de perseguição baseada em essencialismos e evidencia como o antissemitismo opera por meio de generalizações que não se sustentam na realidade concreta dos sujeitos históricos. Sacks nos convida, portanto, a refletir sobre o modo como o discurso de ódio pode instrumentalizar contradições para sustentar a exclusão e desumanização de grupos inteiros, ignorando deliberadamente suas pluralidades e complexidades internas. Ao fazê-lo, seu pensamento reforça o imperativo ético de proteger os direitos humanos sob uma perspectiva genuinamente universalista, que reconheça tanto a particularidade dos povos quanto a dignidade compartilhada da humanidade.

A pluralidade interna do povo judeu é um dado incontornável para qualquer análise honesta e crítica que se proponha a discutir sionismo, Estado de Israel e antissemitismo. Reduzir essa coletividade a uma posição homogênea é não apenas intelectualmente desonesto, é racista. Um exemplo eloquente dessa diversidade é o bairro de Mea Shearim, em Jerusalém, uma comunidade judaica ultraortodoxa estabelecida no século 19, conhecida por sua oposição histórica e teológica ao sionismo e ao próprio Estado de Israel.

Para os judeus que vivem ali, muitos pertencentes ao grupo Neturei Karta, a criação de um Estado judeu laico antes da vinda do Messias configura uma violação da Torá e uma rebelião contra a vontade divina. Essa resistência não é apenas simbólica: ela se manifesta em atos concretos, como protestos públicos, recusa de participação política e judicial e rejeição de benefícios estatais, evidenciando a complexidade das relações entre identidade judaica, religiosidade e nacionalismo.

Essa dissidência interna reafirma que nem toda crítica ao Estado de Israel se confunde com antissemitismo, mas também que nem todo judeu é sionista, uma distinção essencial para o debate técnico e ético. O reconhecimento dessa pluralidade é condição para se evitar as armadilhas da generalização e para compreender que, assim como há diversidade de opinião entre palestinos, há igualmente entre os judeus: religiosos, laicos, progressistas, antissionistas, pacifistas e outros tantos.

No campo do Direito Internacional, instrumentos como a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (1948) e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) reforçam que a liberdade de expressão não é absoluta e deve ser compatibilizada com a proteção de minorias vulneráveis, inclusive no discurso, podemos questionar a guerra em curso, com base nos direitos humanos e internacionais, apontando exceções e manipulações, usando por exemplo os Princípios de Siracusa (1984) como diretrizes interpretativas do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, estabelecem que quaisquer restrições aos direitos humanos, mesmo em tempos de emergência, devem ser necessárias, proporcionais, antidiscriminatórias e voltadas para fins legítimos.

Aplicados ao contexto de conflitos armados e ocupações prolongadas, como o que ocorre entre Israel e Palestina, esses princípios funcionam como balizas para avaliar a legitimidade das ações estatais. O uso desproporcional da força, a punição coletiva de populações civis, a negação de o a serviços essenciais ou a instrumentalização da segurança nacional para violar sistematicamente direitos humanos e fundamentais não apenas contrariam o espírito do Direito Internacional, como também revelam o esvaziamento ético de justificativas utilizadas para legitimar a violência.

Criticar essas práticas não é antissionismo, é um imperativo de justiça e legalidade. E, da mesma forma, é necessário recusar que tais críticas sejam instrumentalizadas para propagar preconceitos contra judeus como povo, pois a universalidade dos direitos humanos exige coesão ética e rigor técnico, não seletividade moral.

No Brasil, a Constituição de 1988 assegura em seu artigo 5º, inciso XLII, que a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível. A Lei nº 7.716/89 complementa esse dispositivo, tipificando condutas discriminatórias. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, notadamente o julgamento do caso Ellwanger (HC 82.424), foi marco importante na consolidação da compreensão de que o antissemitismo se insere na categoria do racismo, permitindo o uso de dispositivos legais protetivos com base nessa equiparação.

A discussão sobre racismo e antissemitismo é plural e amplíssima. Requer, mais do que nunca, uma abordagem cuidadosa, informada e ética.

 


Referências

GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.

LIPSTADT, Deborah. The Eichmann trial. New York: Schocken, 2011.

OZ, Amós. Entrevista concedida ao programa Roda Viva. São Paulo: TV Cultura, 2 fev. 2012. Programa de TV. Disponível aqui.

SACKS, Jonathan. A mutação do antissemitismo. Disponível aqui.

Autores

  • é advogada, cientista social, professora, especialista em gestão estratégica de compliance e integridade corporativa e em direitos humanos pela Universidade Federal do ABC, especialista em Direito Tributário pela FMU, professora universitária, orientadora convidada na UFMG, coordenadora do 1º Curso de Compliance e direito Antidiscriminatório da Escola Superior de Advocacia de São Paulo, vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial Ordem dos Advogados do Brasil do Estado de São Paulo, conselheira membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da Fiesp e mestranda na USP  na linha de pesquisa de Direitos Humanos e Racialidades.

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