Registrar é preciso: segurança jurídica e boa-fé objetiva na concentração dos atos na matrícula
6 de junho de 2025, 19h38
A aquisição de um imóvel representa, para a grande maioria das famílias, e na maioria das vezes, não apenas a realização de um sonho, mas o maior investimento de toda uma vida. O mesmo se diga em relação às sociedades empresárias, que precisam ser muito assertivas ao adquirirem imóveis. Essa relevância econômica e social que permeia esse tipo de transação exige do ordenamento jurídico brasileiro a criação e manutenção de mecanismos eficazes de publicidade, de prevenção de litígios e de segurança jurídica. Nesse contexto, merece destaque o chamado princípio da concentração dos atos na matrícula, previsto no artigo 54 da Lei nº 13.097/2015, posteriormente consolidado pelas importantes alterações introduzidas pela Lei nº 14.382/2022.

Referido princípio estabelece que todas as informações juridicamente relevantes, tais como penhoras, indisponibilidades, ações reipersecutórias e quaisquer restrições de natureza judicial ou istrativa devem necessariamente constar na matrícula do imóvel para que possam ser consideradas oponíveis a terceiros de boa-fé. É nela que deve estar concentrado todo o histórico registral do imóvel. Nesse sentido, Caroline Feliz Sarraf Ferri esclarece com precisão que:
“Princípio da concentração: reforçado pela Lei n. 13.097 de 2015, determina que todas as informações pertinentes ao imóvel ou aos direitos do titular devem ser registradas na matrícula correspondente” (Ferri, 2024, p. 89).
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem consolidado entendimentos que reforçam a importância da matrícula como centro de convergência das informações imobiliárias. Nesse sentido, a Súmula 375 do STJ dispõe de forma clara que “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.
Com fundamento nessa orientação jurisprudencial, a aquisição de imóvel cuja matrícula não indique a existência de constrições ou litígios em curso não pode ser posteriormente desconstituída, salvo se houver prova inequívoca e robusta de má-fé por parte do adquirente. Esse entendimento foi substancialmente reforçado pelo § 2º do artigo 54 da Lei nº 13.097/2015, incluído pela Lei nº 14.382/2022, que expressamente estabelece:
“Para a validade ou eficácia dos negócios jurídicos […] ou para a caracterização da boa-fé do terceiro adquirente […], não serão exigidas: I – a obtenção prévia de quaisquer documentos ou certidões além daqueles requeridos nos termos do § 2º do art. 1º da Lei nº 7.433/1985; II – a apresentação de certidões forenses ou de distribuidores judiciais“ (grifo do articulista).
A Lei nº 7.433/1985, por sua vez, com a redação dada pela Lei nº 13.097/2015 deixa claro em seu artigo 1º, § 2º, que “O Tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição” (grifo do articulista).
Com essas inovações legislativas, portanto, impõe-se ao titular de qualquer direito que deseje garantir oponibilidade perante terceiros o ônus inequívoco de providenciar sua inscrição na matrícula imobiliária correspondente. Esse novo tratamento conferido ao princípio da concentração na matrícula decorre do reconhecimento da sua importância, na medida em que fundamentado nos princípios estruturantes da segurança jurídica e da publicidade registral. Ressalta Frederico Jorge Vaz de Figueiredo Assad, na obra Registro Eletrônico de Imóveis, Lei 14.382/2022 e a Reforma da Lei de Registros Públicos, coordenada por Alberto Gentil de Almeida Pedroso, que:
“O aspecto essencial de toda atividade notarial e registral, assim, é a segurança jurídica, que é verdadeiramente um megaprincípio, pois todos os demais princípios convergem para ele […], sendo ‘a luz que ilumina os demais princípios e não poderá ser confrontada por eles, caso ocorra algum conflito aparente entre os princípios’. É a segurança jurídica que garante estabilidade e proteção aos negócios jurídicos imobiliários” (Assad, 2024, p. 30-31).
O autor prossegue esclarecendo que “no aspecto ao direito registral, a publicidade é o lançamento do ato inscritível em livros especiais do Estado, com a possibilidade de o a todos, por meio de certidões, salvo expressa disposição legal em contrário. […] Essa ibilidade é imprescindível para garantir a transparência nas operações imobiliárias […] assegurando assim a legalidade e lisura dos atos praticados”.

Destaca ainda que “no contexto jurídico-istrativo, o Registro de Imóveis configura-se como uma atividade essencialmente voltada à organização técnica e istrativa com o escopo de assegurar a publicidade, autenticidade, segurança e efetividade dos atos jurídicos inerentes à propriedade imobiliária […] cumprindo a função de garantidor do direito fundamental à propriedade, tal como previsto no art. 5º, inciso XXII da Carta Magna”.
Necessidade de adequação
Essa concepção sistêmica é igualmente reiterada pelos renomados doutrinadores João Pedro Lamana Paiva e Décio Antonio Erpen, que destacam com propriedade:
“Tem-se apregoado que, adotando-se o sistema tabular, deve ele ser completo. A matrícula (fólio real), em substituição às inscrições de cunho pessoal e cronológico, deve ser tão completa que dispense diligências outras, até criar-se a cultura da segurança jurídica.”
E complementam: “Assim, a nosso ver, nenhum fato jurígeno ou ato jurídico que diga respeito à situação jurídica do imóvel ou às mutações subjetivas pode ficar indiferente à inscrição na matrícula. […] todos os atos e fatos que possam implicar alteração jurídica da coisa […] devem concorrer à matrícula”.
Nessa mesma linha, Marcelo Rodrigues enfatiza a importância da concentração registral como instrumento de segurança jurídica, destacando que “o sistema registral brasileiro adotou o princípio da concentração, segundo o qual todas as situações jurídicas que digam respeito ao imóvel devem estar averbadas ou registradas na respectiva matrícula, de modo a proporcionar aos interessados o conhecimento integral da situação jurídica do bem” (Rodrigues, 2022, p. 187).
Diante desse novo cenário, também os advogados e demais operadores do Direito devem se adequar rapidamente à lógica da concentração registral, contribuindo para a criação de uma cultura de levar a registro, utilizando o termo em sentido amplo, quaisquer ocorrências que, por qualquer modo, repercutam ou possam repercutir nos direitos relativos ao imóvel. Ao propor ações judiciais que envolvam direta ou indiretamente bens imóveis, especialmente aquelas íveis de resultar em constrições ou na perda da titularidade, torna-se absolutamente indispensável providenciar tempestivamente o registro ou a averbação dessas informações na matrícula correspondente.
Sem esse procedimento fundamental, as ações podem se tornar completamente inócuas perante terceiros de boa-fé que venham a adquirir o imóvel. O ônus da publicidade a, portanto, a recair integralmente sobre aquele que deseja preservar direitos contra eventual alienação do bem, sob pena de ineficácia da decisão judicial em face do adquirente de boa-fé.
Diga-se ainda que o Superior Tribunal de Justiça tem aplicado essa orientação em seus julgamentos recentes. No REsp 2115178/SP, o tribunal reconheceu que “Nesse sentido, o objetivo do artigo 54 da Lei nº 13.097/2015 foi homenagear o princípio da concentração de dados na matrícula do imóvel, de modo a retirar do adquirente o ônus de diligenciar por eventuais ações, assegurando a sua posição de boa-fé por ter confiado no registro, não podendo a ele serem opostos eventuais direitos que interessados tinham sobre o imóvel, mas não registraram”.
Semelhante entendimento foi reafirmado no AREsp 2.380.469/MG, no qual o tribunal destacou que “vige no ordenamento jurídico pátrio o princípio da concentração de atos na matrícula do imóvel, segundo o qual não poderão ser opostas ao terceiro adquirente de boa-fé as situações jurídicas que não constarem da matrícula do imóvel e, in casu, vê-se que a mera existência da demanda de origem merece considerada como informação a ser dada ciência a terceiros, já que constitui circunstância que, eventualmente, pode comprometer o negócio jurídico realizado entre o empreendedor e os adquirentes das unidades condominiais”.
Ressaltou-se também que “conquanto o agravante defenda que a obtenção de certidão de distribuição forense é diligência mínima a ser perseguida pelos adquirentes de imóveis, nota-se que o artigo 54, § 2º, II, da Lei nº 13.097/15 parece desobrigar os compradores de tal exigência para a validade ou eficácia do negócio. Destarte, mostra-se acertada a decisão do magistrado que considerou a necessidade de dar ciência aos terceiros adquirentes acerca da litigiosidade do empreendimento, a fim de que estejam conscientes das possíveis consequências advindas da procedência do pedido inicial, que levariam, eventualmente, ao desfazimento da construção e, por conseguinte, das unidades alienadas a pessoas estranhas à lide”.
Consolida-se, dessa forma, um modelo jurídico que confere à matrícula do imóvel uma função verdadeiramente central no sistema registral brasileiro, pois é nela que devem estar necessariamente concentradas todas as informações juridicamente relevantes à segurança das transações imobiliárias, não havendo mais que se falar em obtenção de certidão de feitos ajuizados, até mesmo porque os distribuidores forenses não dispõem dos indicadores real e pessoal, relativos a imóveis, previstos no artigo 132 da Lei de Registros Públicos. A publicidade registral e a fé pública inerente à atividade do registrador convergem, assim, para conferir presunção de legalidade, validade e boa-fé aos atos regularmente lançados no fólio real, garantindo a todos os envolvidos nas transações imobiliárias a segurança jurídica indispensável ao desenvolvimento econômico e social do país.
Referências
BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1973.
BRASIL. Lei nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985. Dispõe sobre os requisitos para a lavratura de escrituras públicas e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 dez. 1985.
BRASIL. Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015. Reduz a zero as alíquotas da Contribuição para o PIS/PASEP, da COFINS, da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação incidentes sobre a receita de vendas e na importação de partes utilizadas em aerogeradores; prorroga os benefícios previstos nas Leis nos 9.250, de 26 de dezembro de 1995, 9.440, de 14 de março de 1997, 10.931, de 2 de agosto de 2004, 11.196, de 21 de novembro de 2005, 12.024, de 27 de agosto de 2009, e 12.375, de 30 de dezembro de 2010; altera o art. 46 da Lei nº 11.196, de 21 de novembro de 2005; altera a legislação tributária federal, as Leis nos 13.043, de 13 de novembro de 2014, 10.865, de 30 de abril de 2004, 11.774, de 17 de setembro de 2008, 12.973, de 13 de maio de 2014, 9.493, de 10 de setembro de 1997, 10.426, de 24 de abril de 2002, 12.844, de 19 de julho de 2013, e 10.260, de 12 de julho de 2001, o Decreto-Lei nº 1.455, de 7 de abril de 1976, e a Medida Provisória nº 2.158-35, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 jan. 2015.
BRASIL. Lei nº 14.382, de 27 de junho de 2022. Altera as Leis nºs 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 8.935, de 18 de novembro de 1994, e 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), para implementar o processo de digitalização de serviços públicos prestados pelos cartórios de registro de imóveis, de registro de títulos e documentos, de registro civil das pessoas naturais e de notas. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 28 jun. 2022.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AREsp nº 2.380.469/MG. Agravo em Recurso Especial. Relator: Ministro Francisco Falcão. Data da Publicação DJ 15/08/2023. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stj/2872851450/inteiro-teor-872851455. o em: 01 jun. 2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp: 2115178 SP 2023/0286738-9, relatora: ministra NANCY ANDRIGHI. Data de Publicação: DJe 24/05/2024. Disponível aqui.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula nº 375. O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente. Brasília, DF: STJ, 2009.
FERRI, Caroline Feliz Sarraf. Registro de Imóveis 4.0. 1.ed. – Londrina/PR : Engenho das Letras, 2024.
LAMANA PAIVA, João Pedro; ERPEN, Décio Antônio. Princípios do Registro Imobiliário Formal. Congresso Brasileiro das Entidades de Notas e Registros. Salvador: Instituto Brasileiro de Registro Imobiliário do Brasil, 2003. Disponível aqui.
ASSAD, Frederico Jorge Vaz de Figueiredo. Registro eletrônico de imóveis: Lei 14.382/2022 e a reforma da lei de registros públicos. Coordenação Alberto Gentil de Almeida Pedroso. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2024.- (Coleção Imobiliário Essencial)
RODRIGUES, Marcelo. Tratado de Registros Públicos e Direito Notarial. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022.
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