Direito comportamental e imputabilidade dos réus do 8 de Janeiro
29 de abril de 2025, 6h31
O direito comportamental é uma variante das ciências comportamentais aplicada a entender como a Justiça deve funcionar para ser eficaz. Uma descoberta é que penas mais altas não inibem o crime: criminosos não consultam o Código Penal antes de agir. Outra constatação é que as pessoas fazem coisas erradas porque estão no lugar errado e com as pessoas erradas. Sob condições adversas, seres humanos são facilmente induzidos ao erro.

O tema é tratado no livro “Código Comportamental”, dos professores de direito e criminologia Benjamin Von Rooij e Adam Fine. Segundo o livro, seres humanos guiam seu comportamento por “normas sociais descritivas”, ou seja, contextos feitos coletivamente. As pessoas imaginam o que certo ou errado a partir de hipóteses, influências e informações coletadas no ambiente onde estão, o que pode induzir a decisões erradas.
Uma das linhas da defesa dos réus da tentativa de golpe de 8 de Janeiro é a redução da pena devido ao estado mental dos réus. Segundo o artigo 65 do Código Penal, são atenuantes da pena o crime cometido “sob a influência de multidão em tumulto”, o que é o caso dos acontecimentos de 8 de Janeiro. Outra causa de redução é o crime por “motivo de relevante valor social ou moral”, o que se aplica a muitos deles, crentes de que faziam a coisa certa.
Vieses cognitivos
Pessoas perdem dinheiro em aplicativos de apostas, caem em golpes na internet ou partem para o quebra-quebra no estádio de futebol porque agem de forma impensada, ou seja, não estão no pleno domínio de suas faculdades mentais. As ciências comportamentais atribuem essa “insanidade decisória” à dificuldade em obter e interpretar informações de forma adequada. Decisões erradas decorrem de contextos errados e racionalidade limitada.
As ciências comportamentais somam à “racionalidade limitada” conceitos como “assimetrias de informação”, “vieses cognitivas”, “enquadramentos” e “gargalos decisórios”. Uma tendências comportamentais mais conhecidas é o “efeito manada”: pessoas imitam o que os outros estão fazendo. Outra tendência é a “ancoragem”: decidimos se o que fazemos é certo ou errado partir do que imaginamos que outras pessoas fazem.
As ciências comportamentais dão respaldo ao sistema de justiça criminal moderno quando este leva em conta estados mentais na mensuração da pena. Nosso Código Penal de 1940 estabelece que a pena pode ser diminuída em até dois terços em “virtude de perturbação de saúde mental ou desenvolvimento mental incompleto”. Ou seja: confusão mental e dificuldade em interpretar a realidade reduzem a culpa do réu.
Quebra-quebra
O que leva pessoas comuns a promoverem quebra-quebra em jogos de futebol é um mistério, mas as ciências comportamentais ajudam a entender. Pesquisas indicam que a distribuição aleatória de símbolos, narrativas, atributos morais e a invenção de um “inimigo” comum, antagônico a um conjunto de indivíduos, pode construir um “sentimento de grupo”. O resultado é movimento coletivo baseado em autoexaltação e hostilidade ao adversário.

Essa tendência é chamada “pensamento tribal”, uma estrutura cognitiva destinada a manter o grupo coeso contra ameaças externas. Anos atrás um jornalista inglês se infiltrou em um grupo de hooligans, torcedores radicais, para uma reportagem. Algumas semanas depois estava pulando empolgadamente sobre um ônibus depredado, entoando cantos de guerra. Pertencer ao grupo pode ser destrutivo, mas dá autoestima, propósito e reconhecimento.
Delírio coletivo
A tendência de imitar comportamentos do grupo, mesmo quando são atitudes grotescas, é comum a todos nós. Esse é o objeto da “psicologia de massas”, linha de estudo dedicada a mostrar como estruturas sociais modernas influenciam os indivíduos. Torcidas organizadas, seitas fanáticas e organizações políticas radicais podem se tornar válvulas de escape para indivíduos mais vulneráveis, ou simplesmente no lugar errado, na hora errada.
Desde o livro “Psicologia de massas e análise do Eu”, de Sigmund Freud, de 1921, há uma linha teórica dedicada a descobrir como movimentos radicais angariam seguidores. Uma das ideias da psicologia de massas é que estados mentais recorrentes de culpa, ressentimento, impotência ou inadequação, podem levar a sintomas neuróticos, como depressão e ansiedade, ou a distúrbios psicóticos, como delírios salvacionistas, persecutórios e obsessivos.
Sofrimento emocional e isolamento social são facilitadores do discurso radical. Wilhelm Reich, Theodor Adorno, Erich Fromm, Giles Deleuze e Felix Guattari são alguns dos autores mais tradicionais desse tipo de pensamento. “O fascismo não é um transtorno mental, porque é um fenômeno social. Mas na prática é impossível diferenciar uma coisa e outra”, diz a historiadora da psicanálise Elisabeth Roudinesco.
Brasil: deprimido e ansioso
Se o sofrimento emocional é um fator de risco para movimentos totalitários, o Brasil está em risco. O país é um dos líderes globais em diagnósticos de transtornos mentais ou emocionais. Dados oficiais estimam 30 milhões de brasileiros com sintomas de depressão e ansiedade, mas dados não oficiais chegam a quase metade da população com algum sintoma de sofrimento emocional. Muitos deles podem ficar vulneráveis a soluções milagrosas.
As causas do sofrimento se somam: isolamento social, caos urbano, violência, pressão econômica e abuso de redes sociais. O Brasil é líder em consumo de aplicativos online, com 9 horas de uso por dia, em média. O vício em aplicativos e redes sociais é identificado como um fator de risco à saúde mental. É também a principal porta de o a fatores de risco, como notícias falsas, teorias conspiratórias, fraudes, golpes e outras estratégias oportunistas.
Culpa mental e domínio do fato
No direito penal, a pena depende da consciência do sujeito quanto a seus atos. O chamado “mens rea”, latim para “culpa mental”, integra o cálculo da culpa. É possível cometer um crime de modo informado, deliberado e intencional, ou de modo inconsciente. Nisso, incidem os atenuantes do Código Penal quanto à imputabilidade do sujeito: a culpa é maior para quem age de forma consciente, e menor para quem age de forma inconsciente.
Entre os 1,5 mil réus dos atos golpistas de 8/1 há manifestantes que acreditavam realmente que as urnas foram fraudadas, que o país estava sob a ameaça uma ditadura comunista, que existem poções mágicas, heróis míticos e outros delírios. O estado de confusão do discurso dos réus do 8/1 é tamanho que fica difícil classificar seus atos como atitudes conscientes e esclarecidas, vindas de pessoas no pleno domínio das faculdades mentais.
É evidente que essas pessoas foram manipuladas por uma estrutura institucionalizada de manipulação e cooptação utilizando meios de comunicação de massa. Estados comuns de sofrimento emocional ou transtornos de personalidade são fatores de risco para a manipulação pelo fanatismo extremista, mas não são determinantes. Pessoas emocionalmente vulneráveis precisam das campanhas de desinformação para atingir estados psicóticos.
Justiça e transtorno mental
O sistema de justiça criminal sabe que a prisão não é lugar para tratar problemas mentais e emocionais. A Resolução 43/2023 do Conselho Nacional de Justiça estabelece que, em suspeita problemas de saúde mental, a “autoridade judicial competente revisará os processos a fim de avaliar a possibilidade de extinção da medida em curso” com a “progressão para tratamento ambulatorial em meio aberto”. Para o CNJ, é melhor ir para casa e se tratar.
Entre os 1,5 mil processos contra manifestantes envolvidos no vandalismo de 8 de Janeiro há provavelmente muitos casos de indivíduos com sintomas ocultos ou evidentes de sofrimento emocional e transtornos de personalidade. Pelo que se sabe, isso indica vulnerabilidade a discursos delirantes e comportamentos obsessivos, persecutórios e antissociais. O que seria uma tragédia meramente pessoal se transforma em um movimento criminoso organizado.
Direito comportamental
Segundo o direito comportamental, é preciso levar em conta as normas sociais. A psicologia de massas conta a história de pessoas comuns seduzidas por discursos políticos extremistas distribuídos por meios de comunicação de massa. O que se viu nas ruas do 8 de Janeiro foi o excesso de uso de redes sociais tomar as ruas. Pessoas comuns, teletransportadas para um mundo de fantasia, não conseguiam mais separar verdade e mentira, nem certo e errado.
As penas dos réus do 8 de Janeiro nos parecem exageradas porque atingem pessoas aparentemente “comuns”. O que vemos como excesso de pena é na verdade a constatação de que elas não podem ter chegado lá sozinhas. No fundo, sabemos que essas pessoas foram manipuladas por estruturas político-econômicas poderosas, submetidas a um processo de condicionamento comportamental por meio da distribuição de mentiras e delírios.
É evidente que, ao tomar decisões grotescas como acampar em frente a quartéis e fazer quebra-quebra na Praça dos Três Poderes, essas pessoas não tinham a menor ideia do que estavam fazendo. Usando ferramentas das ciências comportamentais, podemos dizer com alguma certeza que foram vítimas de armadilhas mentais às quais somos todos vulneráveis. Moídos na máquina de desinformação, foram mobilizados como “bucha de canhão” do golpe.
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