Resolução 591: assincronia em relação a garantias e necessidade de interpretação conforme a Constituição (parte 2)
17 de abril de 2025, 9h18
Esta é a segunda parte da análise crítica que faço a respeito da Resolução nº 591/2024 do Conselho Nacional de Justiça. Na primeira parte (clique aqui), destaquei os seguintes pontos:

– apesar dos seus inegáveis méritos, o CNJ tornou-se um super-legislador, sendo bom exemplo disso a Resolução 591;
– para agravar o quadro, essa anômala produção normativa vem timbrada, não raro, por outra marca do CNJ, o apreço por metas quantitativas (que é a clara inspiração da Resolução 591);
– o déficit garantístico gerado pelo ato normativo do CNJ é considerável, conforme apontado em inúmeros artigos publicados aqui mesmo nesta ConJur;
– não pesa somente o fato de “sustentações” assíncronas apresentarem potencial de persuasão muito inferior a uma autêntica sustentação; bem pior do que isso, não há segurança sequer de que essas gravações serão realmente ouvidas;
– o esvaziamento das sustentações orais é extremamente inoportuno, vindo em um momento no qual a garantia se mostra ainda mais relevante e necessária.
Feita a compilação das ideias principais da primeira parte, já é possível prosseguir.
Contrariedade a valores fundamentais previstos pelo C
Na primeira parte deste trabalho, foi assinalado que as sustentações assíncronas implicam considerável déficit garantístico. Sendo assim, inevitável se mostra a colisão com o C, estatuto de inspiração nitidamente garantista, a ponto de reservar o seu capítulo inicial para a enunciação de várias normas que decalcam direitos fundamentais constitucionais. E não se cuida, “apenas”, de colisão em face de dispositivos isolados, como é o caso dos artigos 937 e 942. É muito mais do que isso. Em verdade, a Resolução 591 atinge princípios fundamentais do C, sobretudo o contraditório substancial, a cooperação e a isonomia.
Tome-se primeiramente o contraditório substancial (ou participativo), previsto nos artigos 7º, 9º e 10 do C. Por que o adendo do termo “substancial”? Porque há de ser um contraditório “efetivo” (artigo 7º do C), capaz de influenciar o convencimento do julgador. Não pode consistir em mera formalidade. O C não poupou esforços para que esse objetivo fosse alcançado, sobretudo na seara da fundamentação. É exatamente por meio da motivação que o juiz, ao decidir, mostra que leu e considerou os argumentos da parte, ainda que seja para rechaçá-los.
De acordo com o inciso IV do § 1º do artigo 489 do C, não se considera fundamentada a decisão que “não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador” (idêntico, vale registrar, é o teor do artigo 315, § 2º, IV, do P, com redação da Lei nº 13.964/2019).
No entanto, a Resolução 591 despreza o contraditório substancial exigido pelo C. O ato do CNJ, além de aparentemente itir uma decisão não fundamentada contrária ao destaque pedido pela parte, ainda por cima não assegura que a “sustentação” assíncrona venha a ser de fato escutada. O que se tem, então, é um contraditório nem um pouco substancial ou efetivo. Toda a argumentação contida na “sustentação” (sempre entre aspas) assíncrona pode ser ignorada, sem que haja qualquer defesa contra tal desvio. Ficam as palavras dos litigantes completamente ao vento, ao sabor da maior ou menor dedicação e tempo dos julgadores, o que significa uma indisfarçável mutilação da garantia.

Invoque-se brevemente, também, o princípio da cooperação, companheiro dileto do contraditório substancial na sistemática do C brasileiro. Na dicção do artigo 6º do C, “[t]odos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.” Mais até do que princípio, a cooperação pode ser vista como autêntico modelo, do qual decorre “um processo comparticipativo, policêntrico, não mais centrado na pessoa do juiz, mas que é conduzido por diversos sujeitos (partes, juiz, Ministério Público), todos eles igualmente importantes na construção do resultado da atividade processual” [1].
À evidência, a Resolução 591, prevendo gravações íveis até mesmo de serem ignoradas pelos decisores, inviabiliza ou no mínimo dificulta a concretização da “comunidade de trabalho” buscada pelo modelo cooperativo do C de 2015. Em um momento crucial do procedimento, esvazia-se — ou mesmo se interdita — a colaboração das partes para o resultado da causa.
Em terceiro lugar, é preciso falar do princípio isonômico. Tem-se aí mais um valor capital do C, realçado em vários dispositivos muito importantes do estatuto (a exemplo dos artigos 7º, 139, I, e 190, parágrafo único). Nesse campo, o C de 2015 apostou francamente na isonomia substancial. A par do aprimoramento do instituto da gratuidade de justiça, foi valorizada a participação da Defensoria Pública no processo civil. Quase ausente do C de 1973 (mesmo na sua versão derradeira), a instituição ganhou papel de destaque em 2015 — além de um título específico (artigos 185 a 187), prestigiou-se a sua atuação em quase seis dezenas de dispositivos.
Todavia, a Resolução 591 se revela pouco afável em relação ao princípio isonômico. Troca-se o “Day em Court” aberto e democrático das sustentações presenciais por um modelo que privilegia claramente os litigantes mais aquinhoados. Para uma gravação assíncrona prender a atenção do magistrado — e, vá lá, de sua equipe de assessores —, recursos tecnológicos cada vez mais sofisticados serão necessários. Além disso, se tornará ainda mais essencial o despacho de memoriais, tarefa bastante árdua nos dias atuais, dado o incremento do home office entre as carreiras do sistema de justiça (há desembargadores e ministros que se dispõem a dialogar com o defensor da parte por meio de plataformas eletrônicas ou mesmo celular, mas muitos não o fazem).
A equação é elementar: quanto maior a necessidade de investimento material, recursos humanos e aparato tecnológico para uma boa performance junto aos tribunais, pior para a isonomia substancial.
Portanto, a Resolução 591, vale reiterar, não se atrita “apenas” com dispositivos isolados do C, o que já seria bastante grave. Acima disso, afronta normas que estão no coração do estatuto (e, não bastasse, reproduzem garantias constitucionais pétreas).
Caráter antidemocrático da Resolução 591
O C de 2015, por óbvio, é uma lei, aprovada pelos representantes do povo. A formação do estatuto foi especialmente democrática. Envolveu inumeráveis audiências públicas e mais de cinco anos de discussão no Congresso.
Bem ao contrário, a Resolução 591 partiu de um conselho muito qualificado, mas sem representatividade popular. Além disso, o ato normativo foi aprovado em um momento no qual a advocacia estava sem representação no CNJ. Para piorar ainda mais a situação, o ato desabou sobre a comunidade brasileira sem qualquer debate prévio com atores relevantes do sistema — defensores, advogados, procuradores, promotores — ou estudiosos do direito processual e do o à justiça.
Vale acrescentar que a Lei nº 14.365/2022 (que incluiu o § 2º-B no artigo 7º da Lei 8.906/1994 – EOAB) havia ampliado os casos de sustentação oral, remendando veto presidencial ao artigo 937, VII, do C. Apenas dois anos depois, o CNJ, com a Resolução 591, tomou a contramão em relação ao que fora deliberado legitimamente pelo Congresso Nacional.
À luz da teoria democrática, portanto, a Resolução 591 não poderia jamais alterar comandos relevantes do C (e do EOAB).
Tudo ganha maior gravidade na medida em que a Resolução 591, a par do seu caráter formalmente antidemocrático, atingiu garantia que integra o devido processo legal — uma garantia fundamental.
Em artigo sobre a Resolução 591, Lenio Streck assinala que, se o devido processo legal não pode ser restringido por lei, muito menos mediante uma simples resolução [2].
Dada a natureza expansível dos direitos fundamentais, até seria possível ao CNJ, nessa matéria, avançar em relação à lei. Nunca retroceder.
Propostas para uma interpretação (minimamente) conforme a Constituição
Na clássica representação da justiça, Têmis aparece com uma venda sobre os olhos, além de segurar, nas mãos, uma balança e uma espada. A balança sinaliza a necessidade de imparcialidade e também proporcionalidade, equilíbrio.
Sobretudo no direito processual, proporcionalidade e equilíbrio valem ouro. Vigora um preceito (não escrito) elementar: quanto maior a relevância dos direitos em jogo — por exemplo, o jus libertatis —, maior a necessidade de serem levadas a sério as garantias do processo, aí incluída a exigência de ampla participação dos destinatários da tutela jurisdicional.
Tornando à Resolução 591, só há uma forma de tentar salvá-la da inconstitucionalidade: interpretá-la com fidelidade à pauta garantista do C. O primeiro o nesse sentido, em consonância com o preceito enunciado no parágrafo anterior, é não itir que sejam indeferidos pedidos de destaque concernentes a causas relevantes. O que são causas relevantes? Comumente, o sistema informa.
De fato, tome-se inicialmente a Constituição. De acordo com o § 3º do artigo 105 (incluído pela Emenda nº 125/2022, que instituiu o filtro de relevância no recurso especial), a relevância é presumida, de forma absoluta, nos seguintes casos: “I – ações penais; II – ações de improbidade istrativa; III – ações cujo valor da causa ultrae 500 (quinhentos) salários mínimos; IV – ações que possam gerar inelegibilidade; V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça; VI – outras hipóteses previstas em lei.”
O C também fornece ótimas indicações. O sistema de precedentes mora na alma do estatuto. Logo, é de todo conveniente que haja genuína sustentação oral no julgamento de todas as espécies que levam à formação de precedentes, inclusive IRDR e IAC no âmbito dos tribunais estaduais e regionais. Diga-se o mesmo das hipóteses de repercussão geral presumida previstas no C (artigo 987, § 1º; artigo 1.035, § 3º, I e III). Outro índice de relevância deriva das hipóteses de participação do MP no processo civil, como fiscal da ordem jurídica (artigo 178 do C), quais sejam: “I – interesse público ou social; II – interesse de incapaz; III – litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana.”
Nessa jornada sistemática, um último exemplo não poderia faltar (valendo frisar que não é exaustiva a lista que estou apresentando). A Recomendação nº 158/2024, do próprio CNJ (aprovada menos de um mês após a edição da Resolução 591), assenta que os tribunais brasileiros, com exceção do STF, devem considerar “a realização de consultas ou audiências públicas em processos nos quais a eficácia da decisão possa atingir um grande número de pessoas” [3] Entendeu o CNJ, assim, que se trata de casos relevantes — e realmente são.
Pois bem, em todas as hipóteses que acabei de indicar, a interdição ou o esvaziamento da sustentação oral implica enorme contrassenso, à luz de uma linha garantista — a linha do C e da Constituição. A relevância da causa é atestada claramente pela ordem jurídica, mas ainda assim se subtrai dos litigantes uma valiosa garantia.
Além das propostas de ordem substancial formuladas acima, também cuidados procedimentais devem ser adotados para que a Resolução 591 ganhe interpretação (minimamente) conforme a Constituição.
Em primeiro lugar, eventual indeferimento em relação ao pedido de destaque feito por qualquer das partes ou pelo representante do MP (artigo 8º, II, da Resolução 591) não pode ser considerado imune às exigências do artigo 489, § 1º, do C, que versa sobre a fundamentação das decisões. Muito ao contrário, a regra, respeitando o que prescreve o C, deve continuar sendo a sustentação oral, cumprindo ao relator do feito, caso entenda de forma diversa, justificar a excepcionalidade de maneira adequada.
Em segundo lugar, eventual rejeição do pedido de destaque não pode receber o selo da irrecorribilidade, o que significaria reduzir a pó todas as medidas aqui propostas, deixando a parte completamente indefesa em relação a indeferimentos imotivados e/ou insensíveis à garantia que se quer proteger.
Final
Ao final da segunda e última parte deste artigo, é preciso dizer que a crítica feita à Resolução 591 não importa desconsiderar as compreensíveis preocupações dos tribunais a respeito do grande número de recursos e sustentações. Também aqui, como em tudo, não é produtivo analisar o problema fitando apenas uma das perspectivas possíveis [4]. Há medidas razoáveis que poderiam ser adotadas, como por exemplo a redução do tempo máximo de sustentação para 10 minutos. Todavia, qualquer dessas medidas há de ser implementada — e essa é uma opinião inegociável do presente artigo — pelo caminho tradicionalmente democrático, ou seja, mediante lei formal.
De toda sorte, eventual restrição pela via legal não poderá deixar de observar a importância das sustentações orais, mesmo em dias tão virtuais e disruptivos. Qualquer advogado ou defensor público que milita na área recursal é capaz de desfiar uma série de casos em que a sustentação foi decisiva para a reversão de um julgamento injusto e infenso aos direitos fundamentais da parte. Não é pouca coisa.
Na chamada fase conceitualista do direito processual (que teve seu apogeu na primeira metade do século 20), a preocupação central com aspectos formais da matéria — a qual, na época, tinha boas justificativas — serviu para toldar as finalidades mais essenciais do processo, a efetivação de direitos e a realização de justiça. Hoje, não podemos deixar que a fixação relativa a metas quantitativas — a qual também não é gratuita — conduza aos mesmos resultados indesejáveis da fase conceitualista.
[1] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2019, p. 11.
[2] STRECK, Lenio Luiz. CNJ não tem poder de alterar o C e nem de criar regras de processo. Conjur, 12/12/2024. Disponível em: /2024-dez-12/cnj-nao-tem-poder-de-alterar-o-c-e-nem-de-criar-regras-de-processo/. o em: 5 abril 2025.
[3] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/5830. o em: 5 abril 2025. Entre os considerandos da Recomendação, consigna-se, acertadamente, que “o Código de Processo Civil fomenta maior participação dos sujeitos interessados na tramitação dos processos judiciais”.
[4] Vale consultar, a propósito: OSNA, Gustavo. Falência da sustentação oral no processo civil brasileiro. Conjur, 24/03/2023. Disponível em: /2023-mar-24/gustavo-osna-falencia-sustentacao-oral-processo-civil/. o em: 5 abril 2025.
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