Opinião

Entrada em domicílio: proteção de vítimas, direitos de suspeitos e previsibilidade e segurança a policiais

Autor

31 de dezembro de 2024, 6h36

Em junho de 2023, um homem sequestrou uma criança de 12 anos, tendo-a levado de Valparaíso de Goiás para seu apartamento na Asa Norte, em Brasília. O homem já foi condenado a uma pena de 45 anos pelos crimes de estupro e sequestro. [1] No dia dos fatos, dada a atuação rápida de agentes policiais, uma guarnição foi deslocada ao local. Porém, havia entre os policiais um receio de entrar no domicílio sem a certeza do flagrante e, por eventual declaração de ilicitude, comprometer toda a persecução penal. A decisão de ingressar ocorreu apenas após o suspeito, ao atender os policiais fora do apartamento, itir que a criança estava no local, durante um interrogatório informal.

A preocupação dos policiais com a licitude da entrada nesse caso foi justificada? Idealmente, não deveria ter sido. No entanto, em certa medida, faz sentido o receio quanto a uma possível invalidação do ato. A causa para esse receio pode ser atribuída a uma série de precedentes judiciais nos tribunais superiores que vêm alterando, de maneira inconsistente, o entendimento sobre o que consistem as fundadas razões para ingresso policial em domicílios.

O marco inicial dessa discussão na jurisprudência pode ser tranquilamente atribuído ao julgado RE 603.616/RO, no STF. Mais recentemente, especialmente no âmbito da 6ª turma do STJ, sob liderança do ministro Schietti, tem se exigido ainda mais rigor para flexibilização da inviolabilidade domiciliar.

Ocorre que após dez anos desde o início da virada jurisprudencial, ainda temos pouca segurança sobre o que legitima ou não a entrada policial em domicílio. A razão para tamanha inconsistência pode ser atribuída à simples falta de consenso entre ministros das cortes superiores e mesmo entre STJ e STF. Porém, como já vem apontando a crítica especializada no assunto [2], é na própria proposição dogmática acolhida no julgado paradigma no STF que se encontra a raiz do problema, tendo demonstrado reiteradas vezes sua insuficiência resolutiva. Nesse sentido, este artigo vem na busca de contribuir para o desenvolvimento de uma proposição dogmática que forneça as melhores soluções possíveis para o problema prático da validade das entradas policiais em domicílio.

O que se entende por dogmática

Para alcançar tal propósito, nas linhas a seguir será exposto o que se entende por dogmática, serão apresentados os pressupostos teóricos que guiarão a análise, os objetivos a serem alcançados com a proposição dogmática a ser formulada, e serão feitas as críticas às proposições atualmente dominantes para, enfim, ser sugerida aquela que melhor atende aos pressupostos e objetivos expostos.

A dogmática, e vale lembrar aqui os ensinamentos do professor Tércio Sampaio [3], tem caráter instrumental. A dogmática sintetiza um conjunto de ensinamentos prévios na forma de uma proposição que permite ao juízo ou ao policial, no caso concreto, aplicar o direito de forma a melhor resolver um determinado problema.

Além de relevante questão político-institucional [4], muitas são as variáveis a serem consideradas para formulação da solução que melhor atenderá ao problema. Expor que variáveis são essas implica, ainda, em assumir pressupostos teóricos específicos, pois os efeitos e fins pretendidos devem ser coerentes com eles.

Pressupostos teóricos

O primeiro pressuposto é a adesão ao sistema de garantias, ao regime de legalidade e ao devido processo penal de base constitucional. Significa, dentre outros muitos elementos, o condicionamento da validade de atos de investigação ou processuais à legalidade e à materialidade constitucional. Assim, adere-se ao princípio da desconfiança e de um direito negativo da pessoa cidadã em face do Estado-Penal. É a autoridade que se curva à lei e não a lei que se curva à autoridade. Além disso, não é o encontro com a verdade que valida a ação das autoridades, mas a justificação do seu agir, tendo ou não encontrado o ilícito. Em resumo, rechaça-se o brocardo substancialista male captum bene retentum e a teoria dos poderes implícitos. O modelo de Estado de direito de base democrática se justifica pelos meios empregados e não pelos fins alcançados.

Spacca

Segundo pressuposto é que o subsistema penal de polícia não deve ser independente do sistema de garantias. Está sim sujeito aos condicionamentos dos princípios basilares do processo penal, especificamente o do artigo 5º, XI, que prevê a inviolabilidade domiciliar, além, é claro, do dever de motivação das decisões, inclusive istrativas. Esse segundo pressuposto, derivado do primeiro, precisa ser dito para rebater o argumento de que a polícia deve ter plena autonomia de operação. Deve estar sob controle judicial, especialmente quando sua atividade se defronta com direitos fundamentais.

Terceiro pressuposto se refere ao diagnóstico de que, conforme vem sustentando em consenso as pesquisas no assunto [5], a polícia tem abusado da excepcionalidade constitucional da inviolabilidade domiciliar, especialmente sob o argumento da permanência dos crimes de drogas. Não é por acaso que praticamente toda a discussão sobre o assunto vem atrelada à nossa política de drogas que, seguindo a política criminal com foco no pequeno varejo, resultou na principal causa de encarceramento no Brasil.

Revelou a pesquisa do Ipea [6] que em metade dos processos criminais de drogas há invasão de domicílio. Muitas delas sucedidas de meras abordagens na rua. Em outra pesquisa do Ipea [7], esta com geolocalização, ficou evidenciado que as violações de domicílio são praticamente exclusivas das áreas periféricas das cidades.

Polícia mais regulada

Dos pressupostos assumidos, emergem os objetivos pretendidos: uma polícia mais regulada em torno das garantias, que não pratique abusos, que não seja racista ou de qualquer forma discriminatória na sua atuação, que policiais tenham segurança e previsibilidade na sua atuação cotidiana, especialmente na salvaguarda de direitos de vítimas e de suspeitos, que se respeite ao máximo possível o comando constitucional de proteção aos domicílios, e que seja desenvolvida uma segurança pública estruturada sobre pilares do regime constitucional de garantias.

Feitas as considerações sobre pressupostos e objetivos, cumpre agora levantar quais são as proposições dogmáticas disponíveis, para que enfim seja escolhida aquela que melhor se adéqua como solução ao problema.

A primeira proposição dogmática é da validação a posteriori. São inúmeras as críticas possíveis a esse modelo e podem ser revisitadas tanto no já mencionada julgado paradigma, bem como em artigos sobre o assunto, desde Sarlet e Weingartner [8]. Dentre as críticas possíveis, duas se destacam. Ao depender do resultado para validação, o próprio policial fica vulnerável, notadamente aquele que, a despeito de boa motivação, não encontra o ilícito na residência. O segundo problema é que, ao inexigir qualquer tipo de fundamentação prévia à descoberta, valida tacitamente tanto a conduta policial imotivada como aquela que se baseia em critérios antijurídicos.

A segunda proposição é justamente aquela do julgado paradigma. Em síntese, deve o policial, ainda que a posteriori, justificar as fundadas razões que indiquem que dentro da casa ocorre situação flagrancial.

Como indicou Gisela Aguiar, [9] o julgado, apesar do avanço, trouxe critérios que se apresentaram frouxos e vagos e, portanto, incapazes de provocar efetivas alterações nas práticas policias, tampouco de trazer segurança jurídica. De fato, após dez anos de tentativas inócuas de solidificar o que efetivamente constituem as tais fundadas razões aptas a legitimar o ingresso policial no domicílio, nos deparamos com um quadro incerto e de base casuísta na jurisprudência.

Na doutrina, vale a menção, dentre outros de importantes juristas, aos trabalhos de Sarlet e Weingarten, Machado e Taipina [10]. Com o perdão da síntese que simplifica demais, a doutrina usa como referência a convicção policial, em grau de certeza variável, sobre a existência ou não do flagrante no interior da residência. As fundadas razões se justificariam especialmente via informação ou por percepção sensorial (plain view, no direito dos EUA) que dão aos policiais a certeza suficiente da ocorrência de crime na residência.

A alternativa dogmática para validação pelo fator certeza apresenta fragilidades consideráveis. A mais imediata é justamente no conteúdo aberto e indeterminado sobre o que vem a ser fundadas razões ou grau de certeza suficiente, algo que nenhuma jurisprudência dará conta de modo satisfatório.

Foco discriminatório

Além disso, trata-se de saída resolutiva que não coloca na equação o problema do foco discriminatório em bairros pobres e de maioria negra, desconsidera os elementos pretéritos de investigação (ou levantamento de informações) que levaram os policiais à residência em questão, permite toda a sorte de manipulações discursivas nos autos sobre “sentir odor” e “ver da janela” [11], e, mais importante, coloca policiais em uma posição difícil justamente em casos graves, com vítimas a serem atendidas sem demora, como no caso da menina sequestrada, quando há poucos elementos de convicção de que de fato há crime atual ou iminente.

Exigir que a motivação do policial para a entrada em domicílio se baseie no grau de certeza do flagrante via percepção sensorial (visual ou olfativa) é justamente o que pode invalidar um flagrante em crimes como de sequestro ou de violência doméstica. No caso da menina sequestrada, o que deveria legitimar a entrada no domicílio, independentemente da confissão (obtida via métodos, estes sim, questionáveis), deveria ser o fator urgência, risco na demora, o periculum in mora. A hesitação dos policiais na entrada em domicílio para salvar a criança se deu justamente porque não havia naquele momento suficiente certeza da ocorrência do crime, ainda que o risco sobre a criança fosse consideravelmente alto.

Nesse sentido, na doutrina, vale a menção desde Amaral, Valois e próprio ministro Schietti [12]. Trata-se do critério da urgência. Nesta proposição, o que valida a entrada em domicílio não é nem a descoberta do ilícito nem o grau de certeza sobre a situação flagrancial, mas a urgência, o risco na demora da intervenção policial. Substitui-se o critério da certeza do crime pelo da necessidade de ação imediata em razão do risco de eventual demora.

Em termos práticos, casos similares como o da menina sequestrada se tornariam de simples solução. Já em crimes como o tráfico de drogas, regra geral, devem os policiais pedir ao juízo competente a quebra da inviolabilidade domiciliar, após apresentarem os motivos da suspeita. Os crimes de drogas, em geral, item o monitoramento pessoal e a campana, o levantamento prévio de informações, a ação controlada e até o flagrante esperado ou diferido, não sendo nenhum tipo de rigor excessivo exigir a motivação ao juízo para fins de garantir o máximo possível o comando constitucional de inviolabilidade domiciliar.

Vítima em risco deve legitimar entrada policial em domicílio

A suspeita de que há uma vítima em grave e iminente risco, ainda que mais frágil do ponto de vista da certeza e de elementos informativos, deve, sim, legitimar a entrada em domicílio sem autorização judicial. O critério da urgência, que protege a atuação firme e imediata da polícia em crimes com vítimas reais, ao mesmo tempo coloca mais rigor e controle na atuação policial nas periferias e sobre a população negra brasileira, corrigindo a rota do esvaziamento da proteção constitucional do domicílio a pretexto de combate aos crimes de drogas.

Além disso, ao contrário do que pode indicar alguns, o critério da urgência é justamente aquele que melhor se alinha ao texto constitucional, que, no seu dispositivo sobre inviolabilidade domiciliar, ombreou a hipótese do flagrante com o socorro e o desastre como exceções que dispensam a autorização judicial.

Sob o prisma da política criminal, a corrente justificação das fundadas razões a posteriori ignora o elemento estrutural do problema das entradas em domicílio, justamente seu aspecto de preconceito racial e geográfico. Exigir critérios mais baseados na certeza sensorial do flagrante pouco ou nada contribuirá para a diminuição da desigualdade de tratamento que existe no policiamento domiciliar.

O critério da urgência, por outro lado, gera uma força de deslocamento de um policiamento focado em crimes do pequeno varejo de drogas a um mais direcionado a crimes com vítimas concretas, como de violência doméstica ou mesmo nos casos mais graves como o de sequestro. Trata-se de proposição dogmática que melhor resgata a força normativa do direito de inviolabilidade domiciliar, que integra preocupações contra o racismo institucional na atuação policial, que melhor protege a atuação policial em casos urgentes, especialmente com vítimas em perigo, além de ser uma dogmática que vai ao encontro de um direito penal focado em vítimas reais e de um processo penal sustentado, o máximo possível, nas garantias constitucionais.

 


[1] Em matéria, disponível em: https://abre.ai/lKBb

[2] AGUIAR, Gisela. Comentário ao STF – RE 603.616/RO: Busca domiciliar sem mandado judicial em situação de flagrante de crime permanente. RT, SP, v. 966, 2016.

[3] FERRAZ JR., T. S. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Atlas, 2015.

[4] Refiro-me em especial ao conflito institucional entre Judiciário e corpos policiais quanto à autonomia de atuação.

[5] A exemplo: PRADO, D. Prisão em flagrante em domicílio: um olhar empírico. R. Direito GV, v. 16, n. 2, 2020.

SANTOS Jr., R. T. dos. A “guerra contra o crime” e os crimes da guerra: flagrante e busca e apreensão nas periferias. RBCCrim, SP, v. 117, 2015.

[6] IPEA. Perfil do processado e produção de provas em ações criminais por tráfico de drogas: relatório analítico nacional dos tribunais estaduais de justiça comum. 2023.

[7] Garcia, R.D. et al. Entrada em domicílio em caso de crimes de drogas: Geolocalização e análise quantitativa de dados a partir de processos dos Tribunais da Justiça estadual brasileira. IPEA, TD n. 2946, 2023.

[8] SARLET, I. W.; WEINGARTNER NETO, J. A inviolabilidade do domicílio e seus limites: o caso do flagrante delito. Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, v. 14, n. 14, 2013.

[9] Aguiar. Idem.

[10]MACHADO, I. Inviolabilidade domiciliar: novas perspectivas a partir do direito comparado. Justiça e Sistema Criminal, v. 6, n. 10, 2014.

TAIPINA, T. Flagrante e prisão. BH: D’Plácido, 2018.

[11] Ver o conceito de vocabulário de motivos, em: JESUS, M. G. A verdade jurídica nos processos de tráfico de drogas. BH: D’Plácido, 2018.

[12]AMARAL, C. Inviolabilidade do domicílio e flagrante de crime permanente. RBCCrim, v. 20, n. 95, 2012.

CRUZ, R. S. Entrada da polícia em residências sem mandado judicial e o julgamento do HC n. 59801 pelo STJ. Revista dos Estudantes de Direito da UnB, [S. l.], v. 17, n. 1, 2021.

VALOIS, L. C. O direito penal da guerra às drogas. BH: D’Plácido, 2017.

Autores

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!